terça-feira, 29 de novembro de 2011

VELUDO...


VELUDO...

História de um cão
Luiz Guimarães

Eu tive um cão. Chamava-se Veludo.
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
para dizer numa palavra tudo,
foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos dum camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo,
não me queria acompanhar por nada.
Enfim - mau grado seu - o vim trazendo.

O meu amigo cabisbaixo, mudo,
olhava-o... O sol nas ondas se abismava...
"Adeus!" - me disse, e ao afagar Veludo
nos olhos seus o pranto borbulhava.
"Trata-o bem. Verás como rasteiro
te indicará os mais sutis perigos.
Adeus! E que este amigo verdadeiro
te console no mundo ermo de amigos."

Veludo, a custo, habituou-se à vida
que o destino de novo lhe escolhera;
sua rugosa pálpebra sentida
chorava o antigo dono que perdera.
Nas longas noites de luar brilhante,
febril, convulso, trêmulo, agitando
a sua cauda, caminhava errante,
à luz da lua - tristemente uivando.

Toussenel, Figuier e a lista imensa
dos modernos zoológicos doutores,
dizem que o cão é um animal que pensa.
Talvez tenham razão estes senhores.
Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
cinco meses depois, do meu amigo,
um envelope fartamente cheio.
Era uma carta. Carta! Era um artigo,

contendo a narração miuda e exata
da travessia. Dava-me importantes
notícias do Brasil e de La Plata,
falava em rios, árvores gigantes,
gabava o steamer que o levou; dizia
que ia tentar inúmeras empresas.
Contava-me também que a bordo havia
mulheres joviais - todas francesas.

Assombrara-se muito da ligeira
moralidade que encontrou a bordo.
Citava o caso d'uma passageira...
Mil coisas mais de que me não recordo.
Finalmente, por baixo disso tudo,
em nota breve do melhor cursivo
recomendava o pobre do Veludo,
pedindo a Deus que o conservasse vivo.

Enquanto eu lia o cão, tranquilo e atento,
me contemplava, e - creia que é verdade,
vi, comovido, vi nesse momento
seus olhos gotejarem de saudade.
Depois lambeu-me as mãos, humildemente,
estendeu-se a meus pés silencioso
movendo a cauda, - e adormeceu contente,
farto d'um puro e satisfeito gozo.

Passou-se o tempo. Finalmente, um dia,
vi-me livre daquele companheiro.
Para nada Veludo me servia...
Dei-o à mulher d'um velho carvoeiro.
E respirei! "Graças a Deus! Já posso",
dizia eu, "viver neste bom mundo,
sem ter que dar, diariamente, um osso
a um bicho vil, a um feio cão imundo".

Gosto dos animais, porém prefiro
a essa raça baixa e aduladora,
um alazão inglês, de sela ou tiro,
ou uma gata branca cismadora.

Mal respirei, porém! Quando dormia
e a negra noite amortalhava tudo
sentí que à minha porta alguem batia.
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
farejou toda a casa satisfeito
e, de cansado, foi rolar dormindo
como uma pedra, junto do meu leito.

Praguejei furioso. Era execrável
suportar esse hóspede importuno
que me seguia como o miserável
ladrão, ou como um pérfido gatuno.
E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
dizê-lo em alta voz e confessá-lo.
Para livrar-me desse cão leproso
havia um meio só: era matá-lo.

Zunia a asa fúnebre dos ventos;
ao longe o mar, na solidão gemendo,
arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo; ele seguia-me. Entanto,
a fremente borrasca me arrancava
dos frios ombros o revolto manto,
e a chuva meus cabelos fustigava...

Despertei um barqueiro. Contra o vento,
contra as ondas coléricas vogamos.
Dava-me força o torvo pensamento.
Peguei num remo e com furor remamos.
Veludo, à proa, olhava-me choroso
como o cordeiro no final momento.
Embora! Era fatal! Era forçoso
livrar-me, enfim, desse animal nojento.

No largo mar ergui-o nos meus braços
e arremessei-o às ondas,de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos,
lutando contra a morte. Era pungente.
Voltei à terra, entrei em casa. O vento
zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
de Veludo nas ondas moribundo.

Mas ao despir, dos ombros meus, o manto,
notei - oh grande dor! - haver perdido
uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: - eu tinha-o unido
contra o meu coração, constantemente,
e o conservava no maior recato,
pois minha mãe me dera essa corrente,
e, suspenso à corrente, o seu retrato.

Certo caira além, no mar profundo,
no eterno abismo que devora tudo.
E foi o cão, foi esse cão imundo
a causa do meu mal! Ah, se Veludo
duas vidas tivera, duas vidas
eu arrancara àquela besta morta
e àquelas vís entranhas corrompidas.
Nisto sentí uivar à minha porta.


Corrí, abri... Era Veludo! Arfava.
Estendeu-se a meus pés e docemente,
deixou cair da boca que espumava
a medalha suspensa da corrente.
Fora crível, oh Deus? Ajoelhado
junto do cão, estupefato, absorto,
palpei-lhe o corpo: estava enregelado.
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.

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