Chapeuzinho Amarelo:
o poder emancipador da palavra
Era a Chapeuzinho Amarelo.
Amarelada de medo.
Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho.
Já não ria.
Em festa, não aparecia.
Não subia escada, nem descia.
Não estava resfriada, mas tossia.
Ouvia conto de fada, e estremecia.
Não brincava mais de nada, nem de amarelinha.
Tinha medo de trovão.
Minhoca, pra ela, era cobra.
E nunca apanhava sol, porque tinha medo da sombra.
Não ia pra fora pra não se sujar.
Não tomava sopa pra não ensopar.
Não tomava banho pra não descolar.
Não falava nada pra não engasgar.
Não ficava em pé com medo de cair.
Então vivia parada, deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo.
Era a Chapeuzinho Amarelo…
E de todos os medos que tinha
O medo mais que medonho era o medo do tal do LOBO.
Um LOBO que nunca se via,
que morava lá pra longe,
do outro lado da montanha,
num buraco da Alemanha,
cheio de teia de aranha,
numa terra tão estranha,
que vai ver que o tal do LOBO
nem existia.
Mesmo assim a Chapeuzinho
tinha cada vez mais medo do medo do medo
do medo de um dia encontrar um LOBO.
Um LOBO que não existia.
E Chapeuzinho amarelo,
de tanto pensar no LOBO,
de tanto sonhar com o LOBO,
de tanto esperar o LOBO,
um dia topou com ele
que era assim:
carão de LOBO,
olhão de LOBO,
jeitão de LOBO,
e principalmente um bocão
tão grande que era capaz de comer duas avós,
um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz…
e um chapéu de sobremesa.
Finalizando…
Mas o engraçado é que,
assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo:
o medo do medo do medo do medo que tinha do LOBO.
Foi ficando só com um pouco de medo daquele lobo.
Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo.
O lobo ficou chateado de ver aquela menina
olhando pra cara dele,
só que sem o medo dele.
Ficou mesmo envergonhado, triste, murcho e branco-azedo,
porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo de lobo.
É feito um lobo sem pelo.
Um lobo pelado.
O lobo ficou chateado.
Ele gritou: sou um LOBO!
Mas a Chapeuzinho, nada.
E ele gritou: EU SOU UM LOBO!!!
E a Chapeuzinho deu risada.
E ele berrou: EU SOU UM LOBO!!!!!!!!!!
Chapeuzinho, já meio enjoada,
com vontade de brincar de outra coisa.
Ele então gritou bem forte aquele seu nome de LOBO
umas vinte e cinco vezes,
que era pro medo ir voltando e a menininha saber
com quem não estava falando:
LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO
Aí, Chapeuzinho encheu e disse:
"Pára assim! Agora! Já! Do jeito que você tá!"
E o lobo parado assim, do jeito que o lobo estava, já não era mais um LO-BO.
Era um BO-LO.
Um bolo de lobo fofo, tremendo que nem pudim, com medo de Chapeuzim.
Com medo de ser comido, com vela e tudo, inteirim.
Chapeuzinho não comeu aquele bolo de lobo,
porque sempre preferiu de chocolate.
Aliás, ela agora come de tudo, menos sola de sapato.
Não tem mais medo de chuva, nem foge de carrapato.
Cai, levanta, se machuca, vai à praia, entra no mato,
Trepa em árvore, rouba fruta, depois joga amarelinha,
com o primo da vizinha, com a filha do jornaleiro,
com a sobrinha da madrinha
e o neto do sapateiro.
Mesmo quando está sozinha, inventa uma brincadeira.
E transforma em companheiro cada medo que ela tinha:
O raio virou orrái;
barata é tabará;
a bruxa virou xabru;
e o diabo é bodiá.
FIM
( Ah, outros companheiros da Chapeuzinho Amarelo:
o Gãodra, a Jacoru,
o Barãotu, o Pão Bichôpa…
e todos os tronsmons).
Introdução
Trata das aventuras de uma menina que tinha medo de tudo. Sabendo que havia um lobo no outro lado da montanha, decide sair em busca de uma resposta para suas dúvidas e receios e também para satisfazer a sua curiosidade.
Essa mocinha sofre de um mal terrível: sente medo do medo. Enfrentando o Desconhecido (o Lobo), ela supera seus temores e inseguranças, encontrando a alegria de viver.
Uma reescritura interessante do conto clássico quase homônimo. Com bastante inventividade estimula, desafia a imaginação do expectador, ao inverter a históia original.
Assim, as personagens Chapeuzinho Amarelo e Lobo dialogam com a versão tradicional do conto "Chapeuzinho Vermelho", dos Irmãos Grimm.
A mudança de cor das suas roupas contém uma simbologia às avessas: o vermelho é associado à pureza, e o amarelo, ao medo que ela tinha de tudo.
Devido ao profícuo trabalho com a palavra, os mecanismos de estilo usados nos processos de atualização do texto funcionam de forma competente. Distanciam-se assim de outras abordagens do conto tradicional, fazendo do livro uma obra digna de apreciação, de uma leitura realmente poética, a partir de seus efeitos lúdicos.
Chico Buarque elabora um texto que valoriza a linguagem, produzindo um discurso com sentidos novos, repleto portanto de polissemia. Já através do próprio título, o livro traz a marca da relação intertextual com o conto universalmente consagrado.
Naquela narrativa, o Lobo ocupa a posição de dominador, com suas características de maldade e agressividade; e Chapeuzinho ocupa a posição de dominada, com suas características de ingenuidade e impotência.
A paródia de Chico Buarque, ao contrário, trabalha com a desconstrução dessas imagens e o deslocamento dos sentidos, através das pistas que fazem surgir a imagem de Chapeuzinho Amarelo, forte e dominadora, e do Lobo, fraco e dominado.
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