A arte de perdoar
Mônica Imbuzeiro
MOISES GROISMAN, em seu consultório de terapia familiar, em Copacabana:
“O perdão é um investimento afetivo numa relação que se quer manter”
Melina Dalboni
melina.dalboni@oglobo.com.br
O GLOBO: O que significa
perdoar?
MOISES GROISMAN: É um ato que uma pessoa realiza em relação a outra,
esteja ela interessada ou não na manutenção da convivência,
para poder viver melhor consigo e com o outro. E este perdão, numa terapia,
deve ser acompanhado de palavras e até de um
ritual, que inclui a entrega de uma carta de
arrependimento ou de um presente.
● Por que devemos marcar
um perdão com um
objeto simbólico?
MOISES: É importante para dar um ponto final
naquela questão, um“não se fala mais nisso”.
Mas até chegar a este estágio é preciso deixar tudo
muito claro e conversar sobre o que aconteceu.
Num caso de infidelidade, por exemplo, é
preciso conversar e compreender as responsabilidades
de cada um, para que aquele que foi traído
possa se introduzir numa situação da qual havia sido
excluído. Se o ponto final não for dado, a relação
pode se inverter. E aquele que foi magoado
passa de vítima a algoz por voltar sempre ao tema
que não foi devidamente encerrado.
● Existe alguma situação imperdoável ou temos capacidade ilimitada para conceder o perdão?
MOISES: Nós nunca perdoamos
o ato. O abuso, a trapaça financeira, a infidelidade
em si são imperdoáveis. O ato está
marcado na nossa vida e não pode ser apagado.
Perdoamos, sim, a pessoa que praticou o ato,
caso queiramos manter a convivência com ela.
Porque, senão, entraríamos numa perspectiva
sublime e religiosa de que somos capazes de
apagar tudo o que aconteceu, e isso não é possível.
O ato é imperdoável. Aquele ato aconteceu.
A partir disso, é preciso entender a história
daquela pessoa e o que a levou a praticar aquilo e
compreender de que modo você, que foi magoado,
colaborou, mesmo sem perceber, para que
aquilo acontecesse.
● Tentar perdoar o ato em si seria varrer o problema para debaixo do tapete, sem enfrentar a questão de frente?
MOISES: Se perdoamos o ato, estaríamos justificando
aquilo que aconteceu de errado e colaborando para aquela pessoa repetir o ato que tanto nos magoou. Por isso, é preciso saber exatamente o que aconteceu e saber que você está perdoando a pessoa, e não o ato.
● Guardar a mágoa e não perdoar pode levar alguém a adoecer? O perdão liberta?
MOISES: O perdão que você não concede pode
lhe levar a muitas doenças psicossomáticas, a
um câncer, a uma crise de hipertensão, sobretudo
nos casos em que você não pretende manter
convivência com aquela pessoa. Nos meus cursos
sobre o perdão, há uma parte vivencial chamada
perdão familiar. Criei este exercício porque defendo
que todo sintoma, toda patologia, todo problema
emocional que você tenha é decorrente de
uma ausência de perdão em relação a alguma figura parental.
● O perdão parece ser mais benéfico para quem o concede, e não para quem é desculpado. Ele é essencial na superação de traumas?
MOISES: O perdão faz parte das etapas de recuperação
após uma traição no casamento, por
exemplo. Já vi um caso de infidelidade em que a moça,
que teve tuberculose, disse: “Eu estou perdoando
por mim, não por ele, porque eu não quero
adoecer novamente”. Achei brilhante isso.
● O perdão está sempre associado à emoção?
MOISES: Na mágoa, na raiva, sua emoção está presa.
Por isso, a ausência de perdão produz a doença. Então,
na hora em que você consegue desculpar alguém
que te machucou, vem a emoção.
● Existem pessoas que perdoam com mais facilidade?
MOISES: De acordo com a história familiar de cada
um, haverá uma capacidade maior ou menor de
perdoar. Se a pessoa, por exemplo, teve uma rejeição
ou um abandono mais forte na sua vida familiar
vai ter maiores dificuldades para perdoar.
● Qual a importância de pedir desculpas?
MOISES: Pedir perdão é um ato humano de humildade
e arrependimento. Se o outro reconhece
sua parcela de responsabilidade (Moises não usa a
palavra culpa), é mais fácil perdoá-lo. Mas é preciso
saber que não há garantias de que aquela traição
ou trapaça ou erro não irá se repetir. O perdão
é um investimento afetivo numa relação que
se quer manter.
● O perdão não está banalizado?
MOISES: Sim, e não se deve vulgarizar o perdão.
Hoje em dia, tudo é perdoado porque dá trabalho
parar, conversar, enfrentar, punir e manter a
punição. Por exemplo, quanto mais um pai passa
a mão na cabeça de um filho, pior será o resultado
15 ou 20 anos depois. Digo isso porque recebo
este resultado aqui no meu consultório. Vejo
adolescentes que são verdadeiros bichos na
forma como se dirigem aos pais, com palavrões e
um discurso desordenado. O ser humano precisa
ser domesticado, como um animal.
● Os grandes líderes podem pedir desculpas a seus seguidores?
MOISES: Eles não pedem perdão. Isso seria desconstruir
a figura do líder impoluto que conduz o povo. Eles não dizem: “Eu
errei”. O Clinton fez isso em público para a mulher dele porque foi pego, se
não, não teria admitido.
● Qual é a necessidade de uma vítima de violência ou de uma família que perdeu um parente num crime perdoar um criminoso?
MOISES: É preciso retomar sua vida de alguma maneira. É claro que devemos
nos dedicar e contratar advogados para que o culpado seja punido pela Justiça, mas se
esta punição virar um objetivo de vida, esta pessoa
pode adoecer porque aquilo passa a ser sua razão de viver, ou seja,
ela viverá em função de um crime.
● Os pais estão perdoando com muita facilidade?
MOISES: Demais. A desculpa passa a ser tão fácil
que os filhos têm sempre essa expectativa, gerando uma visão deformada. O
que vemos nesses rapazes que dão porrada em boates é isso. E mesmo no
caso do rapaz que atropelou o filho da Cissa Guimarães
e contou com a ajuda do pai para tentar
disfarçar o ato. Se os olharmos no seio familiar,
veremos, possivelmente, que esses garotos são
perdoados sempre e acolhidos incondicionalmente.
É comum ouvir dos pais esta frase: “Eu amo
meus filhos incondicionalmente”. Estão errados.
Não se pode amar ninguém,nem mesmo os filhos, incondicionalmente.
Se ele enfia a faca em alguém ou em você, você
continuará amando acima de toda e qualquer condição? Não pode. Isso
é criar pequenos monstros,acima do bem e do
mal. Esses meninos saem de casa e acham que tudo
será perdoado, que para eles não há limites.
● Perdoar é mais fácil que punir?
MOISES: Sim, porque dá menos trabalho. Perdoando,
os pais não precisam entrar em contato com os
perdões que eles não concederam a seus pais. Trata-
se de uma compensação: darei ao meu filho
tudo o que eu não tive. Cria-se, assim, um filho
tirano, que acaba por massacrar os pais, porque
em vez de o filho pedir perdão, são os pais
que estarão sempre se desculpando por não poder
comprar isso ou não poder fazer aquilo.
● Além de criar crianças e adolescentes sem limites, o excesso de perdão termina por escravizar os pais?
MOISES: Exatamente. Já ouvi de uma mãe: “Para
minha filha, eu dou tudo”.Está errado. A primeira
doação que uma mãe deve fazer é para ela mesma.
Depois, para seu casamento. E, em terceiro lugar,
para seus filhos. Ao se doar completamente para
a filha, esta mãe está dando à menina uma imagem
deformada da vida, e isso é um abuso emocional.
Uma mãe que se doa por inteiro tem a expectativa
de que seu filho também se doe a ela, e isso pode
criar uma relação simbiótica que poderá prendêlos
numa escravidão.
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