sábado, 2 de abril de 2011

A MOSCA AZUL..

A mosca azul - Humberto de Campos


*** *** (Carta a um frade)


*** *** "Meu imprudente e desventurado amigo Frei Cirilo. - Louvado seja Deus no seu coração e no meu. *** Acabo de saber, por uma irreverência dos jornais, que vai abandonar a Ordem dos Franciscanos Descalços para unir-se, em casamento civil e público, à doce e formosa irmã Eleonora da Purificação, da Ordem das Carmelitas Calçadas. E logo a pena me buliu inquieta, como a de um pássaro doido, no desejo de lhe escrever esta carta. Sei que é temeridade, e grande, meter-se um pecado a ministrar conselhos a um santo. Não sabe a relva do campo, que os cordeiros tosquiam, o perfume que tem o gerânio nascido de um convento. Mas um leigo, que era um soldado e muito sabia da vida, já afirmou, uma vez que, "quando um bom em tudo é justo e santo, em negócios do mundo pouco acerta". E o casamento, meu irmão, é um negócio do mundo.


*** Que idéia faz você da sua própria vida ao lado de irmã Eleonora, após o casamento, e consequente abandono do hábito? Cada um de nós já foi monge durante algumas semanas e pode apanhar, no mundo fantástico do seu cérebro, as borboletas coloridas e leves que nele voam. Casados, irão vocês para um chalezinho branco e azul, com glinícias emoldurando as janelas e casais de pombos arrulhando no telhado. No jardim pequenino e fresco os lírios estenderão a mã de cinco pétalas, mandando aos noivos a benção do seu perfume casto. Debruçados na varanda florida, cada um de vocês olhará a imagem da felicidade nos olhos claros do outro. E à noite, em vez das preces rituais, os lábios desfolharão beijos. E cada beijo fará surgir, muito trêmula, e muito pura, uma pequenina estrela no céu...


*** Pela manhã, sairão vocês ambos pela floresta circunjacente, colhendo frutos rosados e ensopando as mão em mel silvestre. À passagem de irmã Eleonora, fresca e cheirosa como um altar de aldeia em dia de festas, as roseiras de Deus estenderão as rosas e as árvores do Diabo encolherão os espinhos. À tarde, você ordenhará as cabras, como um pastor de Teócrito, e levará o leite chiante e morno à face da esposa jovem, vocês acompanharão, de olhos úmidos, e falando baixinho, a ascensão das estrelas miúdas, que irão saindo, e subindo, como formiguinhas de fogo, do formigueiro escuro do Oriente...


*** Quanto é diferente, porém, a vida aqui fora, meu irmão e meu santo, mesmo quando o Amor e a Amizade são padrinhos civis ou católicos do casamento! Substituído o seu pesado hábito de franciscano por uma roupa de leigo, debalde procurará você o chalezinho branco e azul, enfeitado de glinícias e pombos. Ao vir do dia, na casa escura em que se forem vocês esconder, verá você irmã Eleonora discutir com o homem da carne, com o homem do pão, com o homem da banana-ouro ou com o homem da laranja-pedra. O leite de Arcádia, com que você sonhou, virá num boião de boca larga, procedente de Minas, com o cheiro de quinze dias de depósito. Em vez de gorjeio do passaredo livre, o chiar da manteiga derretida. Em lugar do canteiro à porta, espalhando perfume, o bonde na rua, levantando poeira. Chega, porém, o momento da recompensa. Você escuta uma voz, gritando o seu nome: *** - Ci-ri-lóooo! *** O seu coração de noivo entra em alvoroço. É o beijo que vem. É o prêmio de tudo. É a moeda divina, que vai pagar a dívida contraída pela sua esperança. Mas a voz de irmã Eleonora, vinda do interior da casa, completa incisivamente o chamado: *** - Paga aí dois mil réis ao homem da banana!


*** À hora do almoço, em que você verá a seu lado, em vez do mel silvestre, a conta do telefone com uma intimação ao sr. Silvester e em que não haverá nem queijo de cabra nem fruta que não tenha passado um verão na geladeira, espera você, naturalmente, a palavra terna, alimento do coração. Irmã Eleonora, mais ocupada com os pratos do que com você, interromperá, enfim, o silêncio barulhento: *** - Você leu? *** - ?... *** - O artigo do dr. Heitor Lima, homem! Você, então, não leu o que ele diz sobre o divórcio? *** E irmã Eleonora, que, com o casamento, sentou praça no batalhão imenso das defensoras do sexo, irá até à sobremesa discutindo consigo mesmo o problema da emancipação feminina, procurando mostrar a você que os homens todos são animais sem alma, abortos da Natureza, criações malignas do Diabo, que vieram ao mundo para atormentar as mulheres, mas de que estas se devem libertar, de tesoura na unha ou de guarda-chuva na mão. *** Para que se vai, pois, você, meter nessas complicações todas, meu piedoso frei Cirilo? Guarde o seu sonho casto, e bom, e poupe, ao mesmo tempo, o que revoluteia, todo de gaze e renda, na alma cândida de irmã Eleonora. Não mate duas borboletas de uma vez.


Aproveite a oportunidade que o sacerdócio lhe oferece, e pergunte, no confessionário, a todas as mulheres que se ajoelharem nele, se há alguma que não sofreu uma decepção no casamento. Não há realidade feliz que valha a décima parte de um sonho bom. Nem há nenhuma que se assemelhe, mesmo de longe, a um sonho de mulher jovem. E não há vingança mais impiedosa do que a da mulher desiludida. *** *** "Era uma mosca azul, asas de ouro e granada, Filha da China ou do Indostão, Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada, Em certa noive de verão. "E zumbia e voava, e voava e zumbia, Refulgindo ao clarão do sol E da lua, - melhor do que refulgiria Um brilhante de Grão-Mogol". *** *** *** *** Deixe-se, pois, ficar no seu mosteiro, meu santo irmão. E deixe irmã Eleonora no convento em que sonha com você.

Não mate a sua mosca azul.

Humberto de Campos

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