COISAS MIÚDAS
“Um escriba de coisas miúdas”, foi como Machado de Assis se definiu como cronista. Articulista, digo eu, trata de coisas graúdas. Cronista é, quase sempre, escritor, poeta, artista, bacharel, generalista, ou nada, cronista apenas. Articulista é Ph.D., acadêmico, professor, jornalista, técnico ou notório especialista. Crônica e artigo. Apesar de tão distintos, foi não foi, alguém diz que escrevo artigos. Quem me dera!
A crônica é filha de Montaigne. Nasceu em 1580, com o livro Ensaios, ensina Mário Hélio. Com o tempo, o jornal a conquistou. Ao contrário do romance, da novela e do conto, é de leitura rápida, fugaz, consumida junto com notícias. Percepções, visões, opiniões, contemplações, alumbramentos e críticas. Pessoais. Coloquiais como uma conversa entre autor e leitor. Bem-humorada ou desaforada, refletida ou passional, isenta ou apaixonada, doce ou salgada. Assim é a crônica.
O artigo é espécie do gênero jornalístico. Ao contrário da crônica que é gênero literário. O artigo pode especular o porvir. A crônica, com frequência, é nostálgica. Traça paralelos entre o ontem e o hoje, pouco se arrisca no amanhã.
O artigo é atual, contemporâneo. Mesmo quando trata do passado. Traça paralelos com o futuro. Enquanto “a crônica tem no seu próprio nome o seu principal problema: o tempo. Sem trocadilho, a crônica sempre corre o risco de ser anacrônica, e aceita na boa esse risco, porque, afinal, apesar de ser o tempo a sua definição, termina por ser também apenas um subterfúgio para o ‘algo mais’ que a faz literária: o estilo. Assim, lendo uma crônica de Nelson Rodrigues que fala de um jogo de futebol há 30, 40 anos, o que nos fascina não é mais o jogo, mas o estilo que quase o pinta como tragédia”, escreveu o poeta Pietro Wagner Lima.
“Raspas e restos me interessam / Mentiras sinceras me interessam”. Se interessam a Cazuza, interessam ao cronista. Mas, não ao articulista. O que faria o articulista com raspas e restos? Nada. Quanto às mentiras, serviriam apenas para que ele fosse em busca das verdades. Mentiras não dão artigos. Dão crônicas. Mentiras sinceras (e escritas com sinceridade) são verdadeiras. Críveis. Literárias.
Marx concordou com Hegel que “a História sempre se repete”. Mas ponderou: “Ocorre como tragédia e se repete como farsa”. No artigo do historiador, a tragédia. Na versão do cronista, a farsa. A História repetida vira história.
Para escrever uma crônica, Fernando Sabino contou que estava perseguindo o pitoresco ou irrisório, visando o circunstancial, o episódico; um flagrante de esquina, as palavras de uma criança ou um incidente doméstico. Quando, segue ele, “lancei, então, um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica”. E assim nasceu “A última crônica”. No olhar pra fora, Sabino viu o casal com a filhinha na confeitaria. Lá estava a crônica.
O articulista escreve sobre o que aprendeu. O cronista tem algo de eterno aprendiz. Disse Clarice Lispector numa crônica: “quero escrever como quem aprende”. Enquanto o articulista é escorreito, linear e pretende ser permanente, o cronista, como Cecília Meireles, tem “fases como a lua, / fases de andar escondida, / fases de vir para a rua…”
Hoje, mesmo sem motivo aparente, acordei quarto minguante.
Joca Souza Leão é cronista, um escriba de coisas miúdas
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