domingo, 17 de abril de 2011

UMA POESIA DE FERNANDO PESSOA...

ABDICAÇÃO


TOMA, ó noite eterna, nos teus braços
E chama-me teu filho.
Eu sou um rei
Que voluntariamente abandonei
O meu trono de sonhos e cansaços.



Minha espada, pesada a braços lassos,
Em mãos viris e calmas entreguei:
E meu cetro e coroa - eu os deixei
Na antecâmara, feitos em pedaços.




Minha cota de malha, tão inútil,
Minhas esporas, de um tinir tão fútil,
Deixei-as pela fria escadaria.




Despi a realza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.






AH, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um vôo de ave
E me entristeço!




Por que é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Por que vai sob o céu aberto
Sem um desvio?




Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade




Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh'alma alheia




Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do vôo suave
Dentro em meu ser.






FELIZ DIA para quem é
O igual do dia,
E no exterior azul que vê
Simples confia!




O azul do céu fez pena a quem
Não pode ter
Na alma um azul do céu também
Com que viver.




Ah, e se o verde com que estão
Os montes quedos
Pudesse haver no coração
E em seus segredos!




Mas vejo quem devia estar
Igual do dia
Insciente e sem querer passar.
Ah, a ironia.




De só sentir a terra e o céu
Tão belos ser
Quem de si sente que perdeu
A alma p'ra os ter!

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