Ed Mort e o anjo barroco
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Mort, Ed Mort. Detetive particular. Está na plaqueta. Durante meses ninguém entrara no meu escri - escritório é uma palavra demais para descrevê-lo - a não ser cobradores, que eram expulsos sob ameaças de morte ou coisa pior. De repente, começou o movimento. Entrava gente o dia inteiro. Gente diferente. Até as baratas estranharam e fizeram bocas. Não levei muito tempo para descobrir o que tinha havido. Alguém trocou a minha plaqueta com a da escola de cabeleireiros, ao lado. A escola de cabeleireiros passou o dia vazia. Voltaire, o ratão albino, que subloca um canto da minha sala, emigrou para lá. Quando recoloquei a plaqueta no lugar, Voltaire voltou. Ele gosta de sossego. Mort. Ed Mort. Está na plaqueta certa.
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Eu estava pensando no meu jantar da noite passada - isto é, em nada - quando ela entrou. Nem abri os olhos. Disse: "A escola de cabeleireiros é ao lado." Mas quando ela falou, abri os olhos depressa. Se a sua voz pudesse ser engarrafada seria vendida como afrodisíaco. Ela não queria a escola de cabeleireiros.
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- Preciso encontrar o meu marido.
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- Claro - disse eu. - Vá falando que eu tomo nota. Meu bloco de notas fora levado pelas baratas. Uma ação de efeito psicológico. O bloco não lhes serviria para nada. Só queriam nos desmoralizar. Peguei um cartão que um dos pretendentes a cabeleireiro deixara em cima da minha mesa, com um olhar insinuante, no dia anterior. Tenho um certo charme rude, não nego. Sou violeiro. Sorrio para o lado. Uso costeletas. No cartão estava escrito Joli Decorações e um nome, Dorilei. Virei do outro lado. Comecei a escrever enquanto ela falava. A Bic era alugada.
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- Não fui à policia para evitar o escândalo. Meu marido é de uma família conhecida. Isso não pode sair nos jornais.
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Escrevi: "Linda. Linda!"
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- Somos muito ricos. Meu marido vive de rendas. Desapareceu há uma semana.
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Escrevi: "Se eu conseguisse que ela prove o meu fettucine, está no papo." Ela disse:
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- Ele saiu para devolver um anjo barroco a uma loja de decorações. Descobriu que o anjo era falso. A loja se chamava Joli Decorações.
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Escrevi: "Epa!" Era o nome do cartão. Pedi para ela esperar e fui até à escola de cabeleireiros, ao lado. Dorilei estava tendo trabalho para dominar o boufant.
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Recebeu-me com um sorriso brejeiro. Agarrei-o, com dificuldade, pela camiseta colant. A escola de cabeleireiros estava cheia. Houve gritos. Senti que alguém tentava me arranhar por trás. Dei-lhe um cotovelaço. Bateu no medalhão. Doeu, mas doeu mais nele. Com o rabo do olho vi que outro se aproximava aos pulos. Estava armado com um pente elétrico. Derrubei um secador de cabelo no seu caminho. Fiz Dorilei rodopiar e o usei como um escudo, ameaçando quebrar os seus dois pulsos. Isto os deteve. Mandei Dorilei falar, e depressa. Qual era a sua ligação com a Jolie Decorações?
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- Trabalhei lá ontem. Não pude continuar. O ambiente! Por isso vim aprender a ser cabeleireiro.
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O dono da Joli Decorações tinha se metido numa encrenca. Vendera um anjo barroco falso a um ricaço. O ricaço ameaçara denunciá-lo. Tinham se trancado no escritório de Randal, o dono, durante horas. Uma briga feia. No fim, saíram do escritório e da loja.
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- Os dois juntos? - Juntinhos.
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Randal tinha um sítio em Teresópolis. O endereço foi a última informação que tirei de Dorilei, antes de atirá-lo contra a parede. Saí sob vaias. Gente intolerante. Mor. Ed Mort. Está na plaqueta.
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Um detetive deve ter o poder da dedução. Deve procurar pistas e segui-las, não importa o risco. Mas às vezes a coincidência ajuda. Disse para ela que sabia onde procurar o seu marido. Ela se atirou nos meus braços. As baratas, revoltadas, fizeram uma pequena dança de protesto. Voltaire nem olhou. Ela insistiu em ir comigo a Teresópolis. Iríamos no seu carro. O meu estava num estacionamento e eu não tinha dinheiro para pagar a estada. Três anos. Eu às vezes ia visitá-lo e chutar os pneus. Sou assim. Sentimental. Sei lá.
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No caminho para Teresópolis, discutimos o caso. O marido podia ter sido sequestrado. Ou então - foi ela mesmo quem disse - eliminado, para não contar o que sabia sobre o anjo barroco. Talvez estivesse uma quadrilha de falsificadores de anjos. Como o marido era bem relacionado no meio de compradores de antiguidades, uma palavra sua podia arruinar os falsificadores. Sugeri que avisássemos à policia. Ela disse que confiava em mim. Perguntou se eu estava armado. Respondi que sim. Meu 38 estava empenhado, mas canivete também é arma. Pensei: se eu morrer por ela, ela será minha devedora. Mas eu não estarei aqui para cobrar. Sorri com o lado da boca que ela podia ver, mas o outro lado pendeu de preocupação. Paradoxo. Perigo. Mamãe disse que devia estudar contabilidade.
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Não foi preciso chegar à casa. De uma colina, avistamos o jardim. Randal e o marido dela caminhavam por entre os canteiros floridos. Estavam de mãos dadas.
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Na volta para o Rio, ela não disse nada. Pensei em convidá-la a deixar aquela vida - apartamento na Vieira Souto, empregados, iates, viagens à Europa, aquela sujeira - e se juntar a mim. Meu fettucine com vinho Boca Negra a faria esquecer tudo. Tenho tudo que o Agnaldo Timotéo já gravou e ainda vou comprar uma eletrola. Perguntei se ela abandonaria o marido. Ela riu e perguntou se eu estava doido. Deixou-me na galeria. Esqueci de cobrar pelo trabalho.
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O escri estava todo revirado. Frases escritas a batom nas paredes. A vingança dos cabeleireiros. As baratas só esperavam para ver a minha cara. Voltaire mudou-se para a loja de carimbos. Mort. Ed Mort. Estava na plaqueta, mas o Dorilei atirou no chão e sapateou em cima.
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Luis Fernando Verissimo
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