quinta-feira, 7 de abril de 2011

SOBRE MENSALÀO...

Na crença hinduísta, um avatar é a materialização na terra de uma entidade divina. No mundo cibernético, é a representação virtual de uma pessoa, normalmente uma projeção daquilo que alguém gostaria de ser ou de alguma situação com a qual gostaria de conviver. Esse conceito também tem aplicação no mundo político. Quase seis anos depois da revelação de um dos mais amplos esquemas de corrupção já descobertos, o mensalão, o PT tenta reconstruir a imagem dos antigos integrantes da cúpula do partido que protagonizaram o escândalo.

Assim como os bonequinhos que povoam o universo virtual os avatares petistas também são representações idealistas, criadas para imprimir na opinião pública urna imagem irreal dos envolvidos. A saber, a de que todos eles são probos, vítimas de uma grande conspiração “da mídia”. Como tais, eles travam uma guerra santa para provar sua inocência. O ex-deputado José Genoíno é o exemplo mais recente dessa fantasia. Presidente do PT na ocasião do escândalo, ele assinou falsos contratos para justificar a entrada de dinheiro de corrupção nos cofres do partido. Seu avatar impressiona pela ousadia.

Recentemente, Genoíno foi nomeado assessor especial do Ministério da Defesa. Ninguém sabe o que ele faz lá - e nem importa. A ideia é mostrar que o ex-deputado ocupa um cargo relevante, subordinado diretamente a Nelson Jobim, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal. A mensagem subliminar é que um ex-magistrado da envergadura de Jobim não ousaria nomear um criminoso para um cargo de tanta confiança. Para completar, o PT anunciou que pretende lançar a candidatura de Genoíno para uma vaga no Tribunal de Contas da União. A Constituição exige idoneidade moral e reputação ilibada para os ocupantes do cargo, cuja missão é fiscalizar a lisura dos contratos firmados pelo governo federal. José Genoíno tem experiência no ramo.

De acordo com a denúncia apresentada à Justiça, o PT simulou empréstimos para justificar o ingresso de 5.4 milhões de reais no caixa do partido. O dinheiro, na verdade desviado dos cofres públicos, era usado para subornar parlamentares e custear despesas de petistas - os “mensaleiros”, como ficaram conhecidos os integrantes da turma que recebia a mesada. Genoíno, como presidente do PT, assinou os contratos de fachada. Por isso, também responde à acusação de crime de falsidade ideológica em outro processo. “Genoíno tem peso político. Estou disposto a testar o nome dele para o TCU” diz o petista Cândido Vaccareza lider do governo na Câmara. Se tudo der certo, portanto, o avatar terá um título de nobreza: ministro Genoíno.

As nomeações de mensaleiros para postos estratégicos do governo têm o único e claro objetivo de conferir a eles algo que a investigação oficial lhes tirou: respeitabilidade. É uma maneira de tentar conseguir a absolvição perante os cidadãos, para, depois, contar com uma aposta na tradição do Supremo Tribunal Federal de não condenar políticos. João Paulo Cunha, que presidia a Câmara no período do· escândalo, facilitava contratos a financiadores do esquema e usava o dinheiro da propina, assumiu a Comissão de Constituição e Justiça da Casa.

O ex-ministro José Dirceu, apontado como “chefe de quadrilha”, já esteve pelo menos duas vezes no Palácio do Planalto neste ano e não perde um holofote. Na semana passada, ele acompanhou o velório do ex-vice-presidente José Alencar a poucos metros dos ministros do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes e Ellen Gracie, que vão julgá-lo no processo do mensalão. Durante a cerimônia, cumprimentou a ambos com um aceno de cabeça. “Os réus estão testando a nossa tolerância e também a da sociedade”, diz um ministro do STF.


Será que esse marketing da impunidade terá o poder de influenciar o julgamento? “Depende do clima emocional dos ministros”, afirma o ex-ministro do STF Francisco Rezek. É nessa dúvida que os advogados dos réus apostam suas fichas. Em agosto de 2007, quando o Supremo aceitou a denúncia do mensalão, o ministro Ricardo Lewandowski foi surpreendido ao telefone afirmando que “todo mundo votou com a faca no pescoço” e que “a tendência era amaciar para o Dirceu”, o que acabou não acontecendo. O objetivo, de novo, é criar uma atmosfera de pressão. “Essa estratégia, se der certo, pode não impedir uma condenação, mas, no mínimo, vai influenciar no rigor na hora da aplicação de eventuais penas”, afirma o advogado de um dos réus.

A tática utilizada pelos mensaleiros não é uma novidade no meio jurídico, nem uma invenção do PT. Na maioria dos processos criminais, as defesas lançam-se em campanhas para valorizar os aspectos positivos do réu. Se isso não for possível, tenta-se, pelo menos, edulcorar a realidade. O intuito é convencer o julgador de que o réu não representa mais um perigo à sociedade. Esse expediente é especialmente utilizado em casos enredados na lentidão da Justiça - a conhecida irmã siamesa da impunidade que beneficia políticos desonestos de todos os partidos brasileiros. Todos.

Diz o promotor Francisco Cembranelli: “O raciocínio da defesa é que uma condenação, tanto tempo depois, já representa uma falta de sintonia com a realidade atual, uma vez que o réu se mostra útil e integrado à sociedade”. Foi o que ocorreu com Maurício Marinho, o ex-diretor dos Correios filmado cobrando propina - caso que deu origem à descoberta do mensalão. O protagonista do vídeo que detonou o escândalo virou evangélico, acumulou uns quilos a mais e ganhou um emprego novo. Ele trabalha em uma empresa de computação que tem o governo como cliente e, pelo seu histórico, ocupa um cargo que chega a ser surpreendente: gerente de marketing. Mas é só um título honorífico. Na prática, Marinho administra os contratos comerciais da firma e promove cursos para ensinar aos funcionários técnicas de licitação.

A estratégia de emprestar à antiga cúpula petista a aura de uma confraria de ilibados é executada em consonância com uma tentativa de lançar dúvidas sobre o relatar do processo, o ministro Joaquim Barbosa. O magistrado, responsável por transformar quarenta integrantes do governo Lula em réus, numa atitude corajosa e sem precedentes, vez por outra é bombardeado por boatos. Ora ele estaria doente demais para continuar exercendo suas funções na magistratura; ora estaria cansado da rotina da corte, o que prejudicaria o andamento do processo, inclusive com a possibilidade de prescrição de alguns crimes. No ano passado, houve pelo menos duas ocasiões em que foram difundidos boatos de que Joaquim teria pensado em requisitar a aposentadoria. Teria até consultado auxiliares sobre a possibilidade. Tudo mentira.

Apesar de já terem se passado seis anos da descoberta do esquema, o que parece ser uma eternidade, o processo do mensalão andou em um ritmo relativamente célere, dada a quantidade de réus e o número de recursos que visavam unicamente sua protelação. O ministro Joaquim Barbosa informou que as últimas diligências estão em fase de conclusão e que não há risco de prescrição dos crimes - nem mesmo o de formação de quadrilha, como chegou a ser divulgado. A previsão é que o julgamento comece ainda neste ano. Diz o jurista Luiz Flávio Gomes: “Até lá, a defesa vai tentar criar o melhor ambiente possível para os réus. É do jogo”.
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