sexta-feira, 8 de abril de 2011

UMA CRONICA DE MÁRIO DE ANDRADE...

A Sra. Stevens

- Mário de Andrade



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- Mme. Stevens.
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- Sim, senhora, faz favor de sentar.
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- Fala francês?
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- ... ajudo sim a desnacionalização de Montaigne.
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- Muito bem. (Ela nem sorriu por delicadeza.) O sr. pode dispor de alguns momentos?
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- Quantos a Sra. quiser. (Era feia.)
*** - O meu nome é inglês, mas sou búlgara de família e nasci na Austrália. Isto é: não nasci propriamente na Austrália, mas em águas australianas, quando meu pai, que era engenheiro, foi pra lá.
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- Mas...
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- Eu sei. É que gosto de esclarecer logo toda a minha identidade, o sr. pode examinar os meus papéis. (Fez menção de tirar uma papelada da bolsa aranha-céu.)
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- Oh, minha senhora, já estou convencido!
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- Estão perfeitamente em ordem.
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- Tenho a certeza, minha senhora!
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- Eu sei. Estudei num colégio protestante australiano. Com a mocidade me tornei bastante bela e como era muito instruída, me casei com um inglês sábio que se dedicava à Mefatísica.
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- Sim senhora...
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- Meu pai era regulamente rico e fomos viajar meu marido e eu. Como era de esperar, a Índia nos atraía por causa dos seus grandes filósofos e poetas. Fomos lá e depois de muitas peregrinações, nos domiciliamos nas proximidades dum templo novo, dedicado às doutrinas de Zoroastro. Meu marido se tornara uma espécie de padre, ou milhor, de monge do templo e ficara um grande filosófo metafísico. Pouco a pouco o seu pensamento se elevava, se elevava, até que desmaterializou-se por completo e foi vagar na plenitude contemplativa de si mesmo, fiquei só. Isto não me pesava porque desde muito meu marido e eu vivíamos, embora sob o mesmo teto, no isolamento total de nós mesmos. Liberto o espírito da matéria, só ficara ali o corpo de meu marido, e este não me interessava, mole, inerte, destituído daquelas volições que o espírito imprime à matéria ponderável. Foi então que adivinhei a alma dos chamados irracionais e vegetais, pois que se eles não possuíssem o que de qualquer forma é sempre uma manifestação de vontade, estariam libertos da luta pela espécie, dos fenômenos de adaptação ao meio, correlação de crescimento e outras mais leis do Transformismo.
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- Sim senhora!
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- Como o Sr. vê, ainda não sou velha e bastante agradável.
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- Minha...
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- Eu sei. Com paciência fui dirigindo o corpo do meu marido para um morro que havia atrás do templo de Zoroastro, donde os seus olhos, para sempre inexpressivos agora, podiam ter, como consagração do grande espírito que neles habitara, a contemplação da verdade. E o deixei lá. Voltei para o bangalô e fiquei refletindo. Quando foi de tardinha escutei um canto de flauta que se aproximava. (Aqui a Sra. Stevens começa a chorar.) Era um pastor nativo que fora levar zebus ao templo. Dei-lhe hospitalidade, e como a noite viesse muito ardente e silenciosa, pequei com esse pastor! (Aqui os olhos da Sra. Stevens tomam ar de alarma.)
*** - Mas, Sra. Stevens, o assunto que a traz aqui a obriga a essas confissões!...
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- Não é confissão, é penitência! Fugi daquela casa, horrorizada por não ter sabido conservar a integridade metafísica de meu esposo e concebi o castigo de...
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- Mas...
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- Cale-se! Concebi meu castigo! Fui na Austrália receber os restos da minha herança devastada e agora estou fazendo a volta ao mundo, em busca de metafísicos a quem possa servir. Cheguei faz dois meses ao Brasil, já estive na capital da República, porém nada me satisfez. (Aqui a Sra. Stevens principia soluçando convulsa.) Ontem, quando vi o Sr. saindo do cinema, percebi o desgosto que lhe causavam essas manifestações específicas da materialidade, e vim convidá-lo a ir pra Índia comigo. Lá teremos o nosso bangalô ao pé do templo de Zoroastro, servi-lo-ei como escrava, serei tua! Oh! Grande espírito que te desencarnas pouco a pouco das convulsões materiais! Zoroastro! Zoroastro! Lá, Tombutu, Washington Luís, café com leite...
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Está claro que não foram absolutamente estas as palavras que a Sra. Stevens choveu no auge da sua admiração por mim (desculpem). Não foram essas e foram muito mais numerosas. Mas com o susto, eu colhia no ar apenas sons, assonâncias, que deram em resultado este verso maravilhoso: "lá, Tombutu, Washington Luís, café com leite". Sobretudo faço questão do café com leite, porque quando a Sra. Stevens deu um silvo agudo e principiou desmaiando, acalmei ela como pude, lhe assegurei a impossibilidade da minha desmaterialização total e, como a coisa ameaçasse piorar, me lembrei de oferecer café com leite. Ela aceitou. Bebeu e sossegou. Então me pediu dez mil réis pra o templo de Zoroastro, coisa a que acedi mais que depressa.
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Aliás, pelo que soube depois, muitas pessoas conheceram a Sra. Stevens em São Paulo.
Mário de Andrade

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