segunda-feira, 15 de novembro de 2010

UMA CRÔNICA DE CRIANÇA...



ASINHA QUEBRADA.
GOIANO BRAGA HORTA.

Di tinha paixão por passarinhos. Nessa época não havia órgãos de proteção da natureza, como esses que hoje impedem que se aprisionem animais da fauna brasileira. Então, nada era proibido; e ali, como em quase todas as cidadezinhas e arraiais do interior, aliás, em qualquer lugar onde houvesse a mais simples casinha, seria quase impossível não encontrar em cada residência algumas gaiolas dependuradas.

Di – é claro - não ficava atrás. Se bem me lembro tinha dezessete passarinhos. Dezessete gaiolas (ou seriam treze? Não, acho que eram dezessete mesmo), cada uma com um mais lindo e colorido que o outro, todos cantadores.

Tinha um canarinho-cabeça-de fogo que, como cantava! Fora apanhado ali mesmo, no quintal, e não tinha sido fácil capturá-lo dentre os canários comuns, parecidos com pardais, que desciam às dezenas para bicar o fubá espalhado pelo terreiro. Foram inúmeras tentativas, pegando e soltando vários deles, até que o amarelinho caiu no alçapão.

Agora, ali estava ele. Elétrico! Enchendo o ar de seus trinados! Ô, coisa linda, esse canário-da-terra, Di dizia orgulhoso, com o dedo alisando o arame da gaiola.

O outro era um pintagol, maravilhoso, parecido com o canário, só que com detalhes pretos nas asas amarelas, o resto do corpo mesclado de amarelo e branco e a cara preta, destacando o bico também amarelo. Era outro xodó de Di.

E se não me falha a memória tinha um gaturamo, um curió, um coleirinho, algum canário belga… Era uma cantoria sem fim, um chilrear alegre, uns imitando o trinado dos outros ou cada um na sua misturando melodias. E era para os olhos a festa de cores e da agitação das plumas dentro das gaiolas.

De todos, o mais amado por Di era um pintassilgo da asinha quebrada. Foi pego justamente por causa desse defeito. Apareceu no quintal tentando voar, não conseguia, Di gritou Maria por uma toalha que jogou depressa sobre o bichinho. Daí foi para a gaiola para cantar e cantar e cantar e ser adorado por toda a família, encantada com o detalhe das peninhas da asa partida que sobressaíam do corpo, dando-lhe um jeito diferente dos demais.

Até que um dia um desastre aconteceu. Não se sabe como, um gato alcançou uma das gaiolas, jogou-a no chão, quando chegaram alertados pelo barulho já era tarde, viu-se apenas o gato safado e xingado fugindo apressado com a presa na boca, escapando pelos paus da cerca, enquanto a gaiola se quedava estatelada com a porta aberta no chão, algumas penas se agitando ao vento, misturadas aos restos de painço espalhados.

Di emocionou-se e culpou-se tanto que libertou todos os passarinhos. Um a um, sob os olhares atônitos da mulher e dos cinco filhos, foi abrindo as portas das gaiolas, pegando-os com suavidade, alisando-lhes as penas, beijando-lhes as cabecinhas e soltando-os no ar.

Era triste e bonito vê-los escaparem ligeiros e desaparecerem no céu.

Bem, eu disse que Di soltou-os todos, mas, entenda-se, os que podiam ser soltos. Creio que restaram três, que não podiam ser libertos, dois por serem criados em gaiola e não sobreviveriam; e o pintassilgo da asa quebrada que não conseguia mais voar.

Di tratou deles com carinho, enquanto foram morrendo, um a um. Sobrou o pintassilgo por mais alguns anos. Notava-se em Di uma certa tristeza no olhar enquanto cuidava da limpeza da gaiola, da troca da água e da colocação do alpiste e de alguma fruta para o único bichinho que sobrou comer e beber.

É que ele internamente contava os dias sabendo que não demoraria a não ter mais nem um passarinho para encantar o seu espírito de menino.

Um dia, o pintassilgo amanheceu de costas no fundo da gaiola, com os pezinhos crispados, voltados para cima, morto.

Di chorou muito. Como fizera com os outros, enterrou-o no fundo do quintal, debaixo da goiabeira.

Disse ele que foi só então que o restinho da criança que existia nele foi-se de sua alma e a partir daí tornou-se verdadeiramente adulto, muito mais maduro e muito menos alegre.

A tristeza de uns, a felicidade de outros: quatorze passarinhos (ou seriam dez? continuo sem saber direito) voaram para as nuvens e até hoje não conseguem entender porque, em um momento de inesperada sorte, ganharam a liberdade, o céu, o sol, as chuvas, as flores, os ares, os insetos, os rios, as matas!

Se soubessem, teriam que agradecer a um gato.

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