E A MORTE CHEGOU PELO DELIVERY
Esteve lá, o 30º corpo estendido nas proximidades da apoteótica avenida, ele esvaia-se em um sangue anêmico pelo território da segregação. Era mais um sobrevivente das ruas que tombara sobre sua casa-canteiro. José Sérgio dos Santos, que aportou os seus 32 anos de existência em um corpo mutilado, deixou de ser, em definitivo, o espinho da fina flor, dos paisagísticos jardins que não foram projetados para o seu deleite.
Treze disparos mataram uma subexistência urbana a dois, deixando sem graça a sua companheira, Maria das Graças que, sozinha, terá que pedir o pão que os ricos amassam.
Foi assim: a morte chegou pelo delivery, em uma moto, provavelmente de consórcio. Veículo símbolo da liberdade de viver e agora ícone da inclusão social, dos globalizados e dos discursos. Trazia dois ocupante-exterminadores, portando suas irracionalidades. Não queriam incertezas, por isso, muitas balas lhe desferiram, quase em frente ao mar, de inexata cor da Ponta Verde, sob o cego olhar de aquinhoados.
Esse vagante desfigurado, não era um miserável habitual, um qualquer. Ele tinha a incompletude do ser expresso em seu corpo; sem um braço, por isso, o chamavam de “Cotó.” Tombou com as únicas coisas que não podiam lhe tirar uma retina ainda cheia da contemplação do mar, ouvidos com o marulhar das ondas, e esperanças de benevolências, mesmo tardias. Sepultou, também, em definitivo, os olhares opressos das hierarquias dos homens. Teria proferido algum impropério linguístico, herança da última flor do Lácio? Não há testemunha para afirmar.
Não se sabe, seguramente, se trilhou por estreitos caminhos, se atalhou por “facilidades” ou teria se perdido nos becos sem saída, por isso, enfim, a última morte; agora em definitivo, sentenciada por quem, por uma consciência cidadã de salões sociais?
Assumo! Eu matei o simulacro de sua vida. Mas, não só eu. Eu, tu, ele, nós, vós e eles. Na verdade, os tiros apenas anunciaram a desocupação do espaço. A morte que já tinham lhe legado pela omissão, foi gradual, lenta e dolorosa, foram anos de votos da indiferença, sufragados ao pouco caso.
Nem um braço foi lhe dado, exceto o do dia da brutal assepsia urbana. Seu extermínio o fez visível. Fora providenciada uma “biografia” de última hora, para aquele cadáver pobre, barato que vai ficar insepulto para assombrar as estatísticas institucionais.
Quem se incomodou tanto com os Sérgios que, naturalmente, jogam na face a igualdade de nossos cheiros, emanados pelo pleno funcionamento de nossas esfíncteres, obrigando-nos a reconhecer as semelhanças da espécie humana, quem?
Eles, os Sérgios, riscam o nosso verniz social, é isso? Sujam nossos jardins, são as ervas daninhas? Por isso, merecem jardineiros semeadores de vidas ceifadas, verdadeiros devastadores de campos de possibilidades, abortadores de sementes que seriam potencialmente árvores.
Não tenho as resposta. Sei que há corpos em sobrevidas perambulando pelas ruas e avenidas, desafiando a existência. Eles ficam como estrangeiros, sem pátria, sem lugar, sem referência. São nômades nos desérticos caminhos da indiferença, vítimas da pátria armada, sem registro, Brasil.
Arriscaria parafrasear Vinícius de Moraes para perguntar: quem irá chorar a morte desses moradores de rua, quem “lhes levará flores”, no seu túmulo de indigente, quem lhes dirá que na vida não havia somente temores, havia privilégios e favores.
Ana Claudia Costa Fortes Cavalcanti.
Olá Padre! Fico muito feliz por ter acolhido a crônica de minha amiga Ana Cláudia,a quem tenho muito apreço e admiração. Ela é um ser sensível às questõs sociais; não fica muda diante dos infortúnios humanos. Por oportuno, convido-o a acessar o nosso blog www.simonemouramendes.com .Caso o aprove, divulgue-o nesse seu cantinho. Saúde e paz!
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