sexta-feira, 12 de novembro de 2010

O CICLO DO CARANGUEJO...JOSUÉ DE CASTRO.




A família Silva mora nos “mangues” da cidade do Recife, num “mocambo” que o chefe da família fez quando chegou de cima.



A família é originária do sertão. Desceu do Cariri, na seca, perseguida pela fome. Fez uma paradinha no brejo, para tentar o trabalho nas usinas, mas não se pôde aguentar com os salários dessa zona, sem ter direito a plantar senão cana. Sem ter, nem ao menos o recurso do xiquexique e da macambira, como no sertão, para quando a fome apertasse.



Nesse tempo espalharam pelo interior um boato que o governo tinha criado um ministério para defender os interesses do trabalhador e que com os fiscais da lei, a vida na cidade estava uma beleza, trabalhador ganhando tanto que dava para comer até matar a fome. A família Silva ouviu esta estória, acreditou piamente e resolveu descer para a cidade, para gozar das vantagens que o governo bom oferece aos pobres.



Logo de chegada a família ouviu que a coisa era outra. Não havia dúvida que a cidade era bonita, com tanto palácio e as ruas fervilhando de automóveis. Mas a vida do operário, apertada como sempre. Muita coisa pros olhos, pouca coisa pra barriga.



O caboclo Zé Luís da Silva não quis desanimar. Adaptou-se: “Quem não tem remédio, remediado está.” Entrou na luta da cidade com todas as forças de que dispunha, mas as forças dele não rendiam que desse para a família viver com casa, roupa e comida. Casa só de 80 mil réis para cima, para comida uns 150 e os salários sem passarem de 5 mil réis por dia.



Começou o arrôcho. Só havia uma maneira de desapertar: era cair no mangue. No mangue não se paga casa, come-se caranguejo e anda-se quase nu. O mangue é um paraíso. Sem o cor-de-rosa e o azul do paraíso celeste, mas com as cores negras da lama, paraíso dos caranguejos.



No mangue o terreno não é de ninguém. É da maré. Quando ela enche, se estira e se espreguiça, alaga a terra toda, mas quando ela baixa e se encolhe, deixa descobertos os calombos mais altos. Num deles, o caboclo Zé Luís levantou o seu mocambo. As paredes de varas de mangue e lama amassada. A coberta de palha, capim seco e outros materiais que o monturo fornece. Tudo de graça encontrado ali mesmo numa bruta camaradagem com a natureza. O mangue é um camaradão. Dá tudo, casa e comida: mocambo e caranguejo.



Agora, quando o caboclo sai de manhã para o trabalho, já o resto da família cai no mundo. Os meninos vão pulando do jirau, abrindo a porta e caindo no mangue. Lavam as ramelas dos olhos com a água barrenta, fazem porcaria e pipi, ali mesmo, depois enterram os braços na lama a dentro para pegar caranguejos. Com as pernas e os braços atolados na lama, a família Silva está com a vida garantida. Zé Luís vai para o trabalho sossegado, porque deixa a família dentro da própria comida, atolada na lama fervilhante de caranguejos e siris.



Os mangues do Capibaribe são o paraíso do caranguejo. Se a terra foi feita pro homem, com tudo para bem servi-lo, também o mangue foi feito especialmente pro caranguejo. Tudo aí, é, foi ou está para ser caranguejo, inclusive o homem e a lama que vive nela. A lama misturada com urina, excremento e outros resíduos que a maré traz, quando ainda não é caranguejo, vai ser. O caranguejo nasce nela, vive nela. Cresce comendo lama, engordando com as porcarias dela, fazendo com lama a carninha branca de suas patas e a geléia esverdeada de suas vísceras pegajosas. Por outro lado o povo daí vive de pegar caranguejo, chupar-lhe as patas, comer e lamber os seus cascos até que fiquem limpos como um copo. E com a sua carne feita de lama fazer a carne do seu corpo e a carne do corpo de seus filhos. São cem mil indivíduos, cem mil cidadãos feitos de carne de caranguejo. O que o organismo rejeita, volta como detrito, para a lama do mangue, para virar caranguejo outra vez.



Nesta placidez de charco, identificada, unificada no ciclo do caranguejo, a família Silva vai vivendo, com a sua vida solucionada, como uma das etapas do ciclo maravilhoso. Cada elemento da família marcha dentro desse ciclo até o fim, até o dia de sua morte. Nesse dia os vizinhos piedosos levarão aquela lama que deixou de viver, dentro dum caixão pro cemitério de Santo Amaro, onde ela seguirá as etapas do verme e da flor. Etapas demasiado poéticas, cheias duma poesia que o mangue não comportaria. Parte-se aparentemente, neste dia, o ciclo do caranguejo, mas os parentes que ficam, derramam caridosos as suas lágrimas no mangue para alimentar a lama que alimenta o ciclo do caranguejo.




Josué de Castro




A presente crônica foi publicada pela primeira vez em 1933. Passados 72 anos, a realidade é ainda mais assustadora no Recife, muito piorada, porque as favelas e ocupações urbanas se multiplicaram nesse tempo e os caranguejos talvez não tenham mais espaço para viver.

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