Escrevi por cá uma crônica sobre vendedores e prestadores de serviço das ruas do Recife e, confesso, não esperava a repercussão que teve. Alguns comentaram e até acrescentaram alguma coisa e sobretudo consideraram a saudade desses tempos distantes na contagem dos anos. O meu ilustre amigo Silvio Costa, que morou em todas as olindas, teve o cuidado de fazer umas anotações a propósito, reunindo pregões e citando outros detalhes dessas curiosidades locais. Uma página inteirinha de referências sobre o tema, o que me levou a ensaiar, outra vez, uma crônica abordando a questão.
Em respeito, até, aos leitores todos, os que gostaram e comentaram e aos que gostaram e não comentaram. Silvio começa por um dos pregões mais comuns da cidade: “Espanador/Vasculhador/ Colher de pau/Esteira d’Angola/Rapa Coco/E grelha…/Eu tenho quartinha”. E lá vinha o homem carregado de apetrechos assim, apropriados à casa, às arrumações domésticas e à cozinha. Andava com tudo isso às costas, com os cabos enormes, de madeira, sempre, apontando para os céus e trazia um colorido peculiar, expondo os “cabelos” do material que vendia, com riqueza nos desenhos e nos contornos.
Outra dessas contribuições de Silvio Costa é a do boleiro, que vendia a broa e o grude, balançava um pequeno sino anunciando a chegada e trazia os seus produtos em uma espécie de mesa envidraçada e sem gavetas, com quatro pernas, carregada na cabeça. Ao primeiro sinal de um comprador qualquer, arriava aquele móvel, e servia o penitente com o auxílio de um garfo de dois dentes, apenas. Na minha rua passava um desses, tinha o cognome de Criança, não sei bem por que razão e conforme os meninos do bairro carregava bolos que davam, habitualmente, dor de barriga. Mas, toda a gente comprava.
A minha mãe, todavia, nunca me deixou provar dessas delícias de Criança, tinha medo do resultado, das cólicas e da febre, da doença, enfim, que lhe atormentava as noites. Nem o doce japonês, cujo vendedor não descuidava em passar, pude provar e tinha inveja da molecada comendo o produto caseiro, que grudava nos dentes e arrancava as obturações. O verdureiro, também, aparecia empurrando uma carroça de cor verde ou azul, e oferecia verduras e frutas, o maracujá para o ponche! Conhecia todos, as empregadas de casa e as madames, chamando pelo nome, mesmo.
O mascate era uma beleza, usava uma mala recheada de coisas ou vinha na carroça puxada a cavalo. Anunciava-se com uma matraca,isto é, uma peça feita de dois pedaços de madeira unidos por uma tira de couro e ia batendo, batendo, para vender as miudezas. Linhas de todos os tipos, agulhas a valer, alfinetes-de-segurança e outras quinquilharias. A minha avó gostava de escolher a linha própria a seu croché ou a linha de tricotar e com esse material enchia o tempo e a vida, produzindo toalhas e panos diversos, os quais, por vezes, vendia.
Era homem de parada certa na minha casa e já estacionava a carroça antes de qualquer chamado, abastecendo a cesta de costura materna e a caixa de sapato na qual uma de minhas tias guardava a matéria-prima de seus predicados manuais. O mascate, anotou Silvio Costa, vendia também banha para alisar os cabelos e perfumes produzidos, artesanalmente, por ele mesmo, de qualidade nem sempre satisfatória. Para o meu pai comprava-se uma Quina, de cuja oleosidade sustentava o negro de seus cabelos, penteados com todo o cuidado de quem tinha orgulho da pilosidade craniana. Para os meninos, a brilhantina Glostora!
O vendedor de galinhas dizia: “Galinha e capão gordo!” E ninguém sabia direito o que era capão, porque sobre essas variantes da espécie não se assuntava com os meninos! Outro se oferecia assim: “Eita jabuticaba!/Já caiu cajá!” Ou assim: “Chora menino/Pra comprar pitomba!” E o homem do miúdo, que vinha gritando – “Miúuuuuudo!” –, enquanto o auxiliar carregava na cabeça o tabuleiro com fígado,coração e miolo de boi, além das tripas.
Como esquecer o homem do algodão-doce, fazendo flocos de açúcar na carrocinha, rodando um veio com a mão direita e recolhendo o produto com a esquerda, num pedacinho de papel colorido? E o vendedor de pipocas, estourando o milho na chapa quente, em frente aos cinemas, permitindo assistir ao seriado do dia com a opção barata e gostosa ou na saída dos colégios para chegar em casa sem fome e ouvir a reclamação de hábito:“Menino! Você come porcaria na rua e não almoça!” Muitos dos meus amigos não dispensavam, à saída dos clubes, nas madrugadas do Recife, o cachorro-quente preparado ali, à vista de toda a gente, com salsicha cozida em vasilhame de alumínio e pão dormido, de um inigualável sabor!
A Sílvio Costa, colega de Universidade e companheiro de jornadas à beira-mar, nostálgicas horas das lembranças do tudo, esta crônica, nascida sob a inspiração de suas notas, em tarde assim, morna e sobretudo feliz…
Geraldo Pereira.
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