terça-feira, 30 de novembro de 2010

UM CONTO...

O PEREGRINO
(Conto de Moreira Campos)

Chão rude, áspero, mais de pedregulhos. Um que outro bode ou cabra nas escarpas. O vento e os redemoinhos de folhas secas. Sobre os lajedos, ao meio-dia, modorravam lagartos. Os casebres em distância de léguas. Seres em farrapos, as calças dos homens em tiras dos joelhos para baixo, olho da enxada ao ombro. As mulheres mal podendo apresentar-se: os restos de roupa remendados não cobriam bem as vergonhas. Esse o pudor com que elas se entremostravam, escondidas no umbral da porta para servir a caneca d'água, moringa na mão, olhos em terra. Nesse mundo Belarmino lavrava o roçado onde possível: o veio d'água, o poço barrento, que os músculos rijos aprofundavam no verão maior. Trabalhava o roçado em companhia do filho, até o dia em que a cobra, em mudança de pele, cega, muito veneno nas presas, picou o rapaz perto do buraco do antigo formigueiro sob a oiticica, única mancha permanentemente verde naquele mundo de cinzas.

O garrote de tira de pano no tornozelo, onde o beiço da pele já crescia duro e roxo. A vista empanada, quase sem luz, o delírio no fundo da tipóia:

– Água.

O ferro em brasa, que a própria mulher do filho trouxe da trempe de tijolos na cozinha. O gemido, contorções do corpo. A pele de fumo voltou a cobrir a ferida. Morreu três horas depois. Longe os vizinhos. Légua e meia o mais próximo. Belarmino teve de ir até lá (o cachorro enrolava-se no chão sob a tipóia do morto). Trouxe outros seres em molambos e grunhidos. E a marcha fúnebre – tipóia oscilante presa à estaca de sabiá – se fez em direção ao distante arruado, onde havia a capela e o telheiro abatido do mercado.

No mais, a solidão da noite e dos seres. A viúva-menina, sem lágrimas. Duro mundo, carente de umidades. Muitas lições de renúncia. Tão trabalhados todos como a escarpa fendida e crestada pelo tempo, por onde subiam bodes e cabras.

– Ahn?

– Ô.

Eram as palavras, na noite que se comprimia, se fechava, vinda dos horizontes, da ramaria seca, de onde voavam bacuraus. Da folhagem do imbuzeiro chegava o rasgo da coruja, sem que o mau agouro espantasse mais. Apenas o cachorro erguia as orelhas, consultava o imbuzeiro e latia, insistente.

– Te cala, bicho!

O menino chorava no berço de varas. A viúva-menina enfadava-se. Erguia-se, limpava com a mão o cisco ligado aos molambos do vestido (a nudez moça e magra contra a chama da trempe na cozinha ou à luz do dia) e servia o mingau de farinha ao filho.

Continuou a levar ao roçado o prato de comida ao sogro, naquele tamanho meio-dia, a colher de latão de través no amarrado do pano. O cachorro a acompanhava, desviando-se pelas veredas: o faro de um que outro preá, mais presente, em pulsações de narinas, no cair da tarde. Belarmino fincava a enxada no barro. Voltava a correr o indicador na testa para livrar-se do suor. Cuspia cuspo grosso. Deslocava-se do canto da boca e punha na pedra a masca de fumo. Sentava-se, benzia-se e iniciava o almoço.

Palavras poucas. Mais os pressentimentos e a compreensão das duras coisas do mundo. Tanto que ela não se assustou quando ele um dia pousou a mão áspera, de muitos calos, um casco, sobre a sua coxa magra. Antes deu-se, sem espanto. Um objeto. Sabia que os olhos dele já lhe varavam o vestido ralo à luz da trempe ou do dia. Entregou-se à sombra do oitizeiro, forrando-se com o próprio pano em que envolvia os pratos.

O cachorro, apoiado nas patas traseiras, orelhas sempre erguidas, foi a única testemunha, sem contar o anum, que teve vôo rasteiro de uma estaca para outra da cerca, ou o lagarto que correu entre folhas secas.

Ela pôs barriga, apareceram as olheiras. A falta de ar já não lhe permitia levar a comida ao roçado. Belarmino valia-se da própria trempe de tijolos sob o mesmo oitizeiro.

A notícia correu de boca em boca, de légua em légua, ouvidos apurados. Uma velha benzeu-se. No nono mês, o próprio Belarmino lhe fez o parto, panela d'água fervente na trempe da cozinha, os molambos molhados. O umbigo do filho ficou crescido pelo corte sem arte. E assim, de grande umbigo, ele começava a engatinhar no chão de barro, o meio irmão já firme nas pernas, o volume da barriga (não perdia o vício de comer barro). Riam os dois, o cachorro entre eles brincando de esconder-se, tudo menino.

Um dia, bateu à porta do casebre o Peregrino. Grande chapéu de palha, o camisolão com o cordão de São Francisco, as alpercatas e o cajado. Nos tornozelos, grudado, o pó das longas estradas. Pregava a Bíblia, os ensinamentos de Deus, em febre de vozeirão e chamas do inferno. As loucuras. A grande barba negra, partida ao meio, tremia. Já trazia notícia daquela mancebia e incesto.

Baixou os olhos diante do vestido ralo da viúva-menina, que já se protegia no umbral da porta. Viu todos: Belarmino, o menino mais crescido, o filho do incesto, que engatinhava e ria sem dentes, o grande umbigo. Pediu pousada, que lhe foi dada na esteira de palha da sala. A noite caiu. Os mesmos seres sem palavras. Mais, em tom de voz e luta com as trevas, as andanças do Peregrino, o mundo de chão que lhe comera as sandálias.

– Este mundo de meu Deus! – dizia, abrangendo o todo num grande gesto.

Não teve recriminações bíblicas. Cessaram ali as chamas do pecado, das condenações eternas. Apagou-se o fogo do inferno. Talvez tivesse tido a intuição de que a palavra de Deus era pequena ou grande demais para compreender a necessidade e a solidão. A mão cabeluda, de unhas sujas, voltou a agradar a cabeça dos meninos. Agradeceu a dormida e o alimento. Apoiou-se ao cajado, e as suas sandálias voltaram a palmilhar os caminhos do mundo.

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