quinta-feira, 31 de março de 2011

MEDO DA ETERNIDADE..

Medo da Eternidade - Clarice Lispector * * * Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade. * Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas. * Afinal minha irmã juntou dinheiro, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida inteira. * - Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa. * - Não acaba nunca, e pronto. * Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Pequei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual eu já começara a me dar conta. Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca. * - E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver. * - Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários. * Peder a eternidade? Nunca. * O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola. * - Acabou-se o docinho. E agora? * - Agora mastigue para sempre. * Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna que enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito. * Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava era aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar. * Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia. * - Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. Agora não posso mastigar mais! A bala acabou! * - Já lhe disse, repetiu minha irmão, que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá. * Eu estava envergonhada diante da beldade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso. * Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim. * Clarice Lispector

Nenhum comentário:

Postar um comentário