sexta-feira, 7 de setembro de 2012

SOBRE MÉDICOS ESCRITORES...

MÉDICOS NA LITERATURA


POR GERALDO PEREIRA...


É de se dizer que a medicina é a única das profissões que conta com uma sociedade literária a congregar seus escritores; sociedade – a Sociedade de Médicos Escritores (Sobrames) – que tem feito encontros nacionais nos quais a produção intelectual é escoada. Não se vê, por exemplo, sociedade de enfermeiros escritores ou de fisioterapeutas ou ainda de advogados, de arquitetos, de engenheiros. A Sobrames em Pernambuco reúne-se regularmente a cada mês e tem uma pauta tão extensa que muitas vezes é difícil dar conta de tudo.
O médico sempre escreveu, como se tem  na literatura universal! É interessante a referência que faz Leduar de Assis Rocha, em seu livro Historia da Medicina em Pernambuco – 2º volume, livro, aliás, a ser reeditado pela Academia Pernambucana de Medicina este ano. Diz o autor que no século XIX quase não se escreveu em Pernambuco; não se escreveu, adianta, no tocante à escrita mundana, enquanto na Bahia e no Rio de Janeiro os médicos foram mais pródigos.
É notável a citação de Orígenes Lessa, esse jornalista, contista, novelista, romancista e ensaísta brasileiro. Diz Orígenes Lessa: “Sem sofrimento, não há literatura”. E, admitindo o fato de nunca ter se distinguido nesse terreno, justificava-se: “Eu nunca sofri o bastante; por isso preciso sofrer mais para escrever melhor.”. Realmente, é o sofrimento que desperta o sentimento e faz o escritor transbordar o coração; sofrimento de qualquer natureza. O sofrimento amoroso, por exemplo, o da perda de um amor que se desejava eterno.
Quando o meu netinho Pablo voltou para a Espanha, deixando aqui toda uma experiência nova em minha família, fui tomado por uma saudade agradável, por um sentimento de falta necessária, porque o infante precisava voltar ao convívio do pai, dos tios espanhois e dos avós, escrevi uma crônica intitulada: “Saudade”. Mas a perda de meu genitor, depois de uma noite inteirinha com ele, acordado, acomodando-o da melhor forma, me fez sentir a minha própria impotência diante da “Proximidade do Inexorável” e escrevi uma crônica com esse título, sentado na mesa de jantar de sua casa, antes de me recolher com ele.
Se o sofrimento inspira o verso ou faz transbordar o coração numa crônica, é claro que outros sentimentos também são inspiradores. A alegria, a satisfação de espírito, a plenitude d’alma permitem a criação literária também. Quando se trata de sofrimento, há quem acredite que o profissional da ciência de Hipócrates é um insensível, isto é quando cessa o trabalho ao lado do leito do seu cliente, passa também a angústia ou a ansiedade que a dor alheia produz. Não é bem assim! Quando a AIDS apareceu, abrimos alguns leitos no Hospital das Clínicas; eram doentes que serviriam ao ensino, mas também teriam que ser assistidos. Todos morriam, então! Os profissionais de saúde entraram em parafuso, não conseguiam salvar ninguém. Angustiaram-se e entraram em grande ansiedade. Foi necessário chamar um psiquiatra que os visse em grupo.
Mas, muito mais interessante que isso, é a experiência descrita no opúsculo “O Sofrimento do Médico: Ontem e Hoje”, publicado pela Academia Pernambucana de Medicina, escrito por Gilda Kelner e Clézio Sá Leitão, no qual há depoimentos verdadeiros do último autor, em torno de seu sofrimento diante da doença alheia. Vejamos: “Para completar o fim de semana, um paciente, Fernando, me foi encaminhado pela Dra. Érica, competente e dedicada hematologista…Faleceu no sábado e fiquei muito mal.”. E mais adiante: “Neste mesmo domingo, me ligaram da UTI, eu estava no sítio, pintando um barco, não pude voltar, não tinha forças, precisava de energia. Falei com o colega de plantão, que sedou, entubou, depois disso não se faria mais nada…”. Os depoimentos são apenas para demonstrar que há um sofrimento do médico, um padecer ao lado de seu doente; um sofrimento que inspira, tantas vezes, o exercício da escrita.
O esculápio, por força de seu mister, tem sempre o que contar, tem sempre uma história a mais para acrescentar numa roda de fiar conversa. Eu, por exemplo, tenho centenas de histórias que poderiam ser narradas sob a forma de contos, sem ferir a ética, porque não há necessidade de se revelar o nome dos protagonistas e nem tampouco as circunstâncias em que aconteceram. À senhora, que desenganada com seu casamento foi recomendada a se vestir de forma sensual, mas o resultado da orientação redundou numa grande surra que lhe aplicou o marido. Ou aquela outra que tendo se apaixonado por mim, me presenteou com um bolo e um queijo do reino de boa marca. A minha mulher considerou que o bolo poderia estar envenenado, mas a latinha do queijo foi de logo aberta. E assim por diante!
O grande Tchékhov, médico que fora, inicialmente profissional de uma área rural – médico rural – em alguns de seus contos dá a nítida impressão de que viveu aqueles fatos. Se não viveu propriamente, talvez tenha visto em outras famílias ou talvez tenha sabido. Em certo congresso de médicos escritores ouvi o comentário de um psicanalista, de cujo nome não lembro mais, que dizia não se inventar a narrativa por inteiro, mas lembrar fatos que se vivenciou, que soube por ouvir falar ou que tomou conhecimento de outra forma qualquer.
Pois é o escritor – Tchékhov – em “Inimigos”, conta que um médico da área rural, Dr. Kirílov, perdeu filho um com seis anos de idade, vitima da difteria, o crupe, que a tantos roubou o existir terreno. Quando a criança ainda está em seu leito de morte, toca a campanhinha e surge o Sr. Abóguin, completamente desesperado com a mulher doente. A esposa desmaiara na sala de casa e como estava com visita cuidou juntamente com o forasteiro, o Sr. Paptchinski, com ele deixou a mulher enquanto trazia o médico. O profissional tinha perdido o filho e disso dá conta ao visitante, mas a insistência foi tão grande e os apelos tão fortes, que mesmo assim ele se dispõe a atender à senhora doente. Seguem na carruagem rumo à casa da infausta mulher. A surpresa, quando lá chegaram, foi muito grande, porque tudo não passou de uma simulação, para que ela fugisse com o amante, o Sr. Paptchinski.
Em outro conto, intitulado de “Angústia”, o mesmo autor conta a história de um cocheiro que também perdeu um filho e sofre com aquilo enquanto trabalha. Precisa desabafar com alguém e puxa o assunto várias vezes com diferentes interlocutores. Ninguém dá ouvidos, porque a desgraça do outro quase não interessa. Disse Nilo Pereira, em “Reflexões sobre um fim de século”, a tragédia humana é como um filme, terminado o enredo, passou também o sentimento. E o pobre do cocheiro termina contando seu padecer à sua égua. “A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seu bafo as mãos do dono…”.

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