quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

UM CORDEL...

* * *
Um folheto de Salete Maria e Fanka


A HISTÓRIA DE JOCA E JUAREZ



Juarez era um senhor
Devoto do meu padim
Trabalhava com ardor
Cultivando seu jardim
“um dia o cão atentô”
E Juarez se apaixonou
Por Joca de Manezim!


Isso se deu em meados
De mil novecentos e seis
Naquele tempo veado
Era bicho que Deus fez
“home não ama ôtro home
Senão vira Lobisomem”
Disse o padre, certa vez
O tal Joca era um rapaz
Zabumbeiro de primeira
Era um tocador capaz
De agradar moça solteira
Mas também ele gamou
Por Juarez se apaixonou

Quando o viu na ribanceira.
O Juarez, que moço bom!
Honesto e temente a Deus
Tinha mesmo aquele dom
De estar junto dos seus
Porém Joca despertava
Algo que o incomodava
Mais profano que os ateus
Orava dias a fio
Pedindo a Deus proteção
Não chiava nem um pio
Sobre a sua condição
Sentia até arrepio
Um sentimento sombrio
Domava seu coração
Dizia: “Deus me ilumine
Não sei o que há comigo
Creio que já imagine
Que amo o meu amigo
Por favor me examine
Preciso que me vacine
Me livre deste castigo!”


Foi um dia à sacristia
Querendo se confessar
Mas o pobre não sabia
Que o padre ia viajar
Falar com os fazendeiros
Combinar com os cangaceiros
Franco Rabelo expulsar.
Pra você vou alembrar:
Romão era conselheiro
Vivendo a orientar
Beatos e bandoleiros.
Apesar da seca forte
O milagre fez suporte
Que atraía os romeiros.
Disse ele: “Meu padim
O senhor tá avexado?
Mas me dê cá um tempim
P’eu lhe contar um babado
Sabe Joca Manezim?
Despertou algo em mim
E por ele estou gamado.”
Padim Ciço extasiado
Ficou teso, branco e mudo
Olhou o seu afilhado
Comentando o absurdo
“meu filho esqueça disso
Largue logo desse viço
Saia já desse chafurdo!”
“Isso é a tentação
Você precisa rezar
Peça logo a Deus perdão
Tire moça pra casar
Veja Sodoma e Gomorra
O castigo contra a zorra
Outra vez pode se dar”.
“Ademais eu advirto
E esclareço a você
Em assunto desse tipo
Nada posso lhe dizer
É tema que não me meto
E com o devido respeito
Eu não me deixo meter.”


“Reverendo acredite
Meu amor é tão sincero
Pela deusa Afrodite
Joca é tudo que mais quero
Tenho padecido tanto
Por viver esse encanto
Pelo homem que eu paquero”.
O vigário apressado
Disse: “Estou de saída
Nesse papo endiabrado
Não encontrarás guarida
Vá plantar o seu roçado
Deixe essa história de lado
Que eu já estou de partida”
Juarez desapontado
Dirigiu-se à Matriz
Avistou Joca sentado
Ao lado de Meretriz,
Uma amiga rapariga
Que amava outra amiga
Que no circo era atriz.
Disse ele: “Caro Joca
Venho do confessionário
Procurei sair da toca
Contei tudo ao vigário
Sobre a nossa condição
Nosso amor, nossa paixão
É triste nosso calvário.
Padim Ciço condenou
Esse ‘amor entre iguais’
Ele me aconselhou
A trabalhar muito mais
Esquecer tal relação
Procurar outra união
Pois esta não me apraz.”


Meretriz falou e disse,
Se metendo na questão:
“tudo isso é tolice
Esse padre é um machão
Pois ordena a Escritura
Para cada criatura
Amar semelhante irmão.”
“O padre tá atrasado
Na sua concepção
Para casos de viado
Tem atualização
Que tal fazer um mestrado
Homossexualizado
Com o São Sebastião?”

“Meretriz é isso aí
disse Joca veemente
Vejo que no Cariri
Você lançou a semente
Vou falar com este padre
Chamar ele de ‘cumadre’
P’rele respeitar a gente.”
Enquanto isso na feira
Pote, cabaça, quartinha
Chinelo, terço, peneira,
Cordel, reisado, lapinha
Entorno toda cultura
P’ruma fé cega e segura
Aquele amor não convinha.


Envolto neste cenário
Joca fitou o Juarez
Um sentimento lendário
Instalou-se de uma vez
E tudo ficou sagrado
Como algo consagrado
Qual um anjo que se fez
Naquela apoteose
Tudo, então, se revelou
Fez-se a metamorfose
Deste proibido amor
Do casulo à borboleta
Emanou d’uma trombeta
Um som que glorificou.
O amor é grande laço
O amor é armadilha
O amor não tem compasso
O amor não segue trilhas
O amor não se condena.
Todo amor vale a pena
Salve quem ama e brilha!
O povo de Juazeiro
Comentava, maldizendo
Foi, então, cada romeiro
Procurar o reverendo
Para que interviesse
E fizesse uma prece
P’ro que tava acontecendo.
Acendido o preconceito
Foi difícil apagar
Apesar do seu conceito


Nunca quis discriminar
Chamou a população
Para ouvir no seu sermão
O que tinha a comentar.
O sacristão trouxe a vela
A beata trouxe o vinho
Meretriz sempre tão bela
Foi chegando de mansinho
Com Floro Bartolomeu
Que era um amigo seu
A quem falou bem baixinho:
“Floro, ouça este pedido
Que tenho a lhe fazer
O Joca está fudido
Juarez pensa em morrer
Suba lá e diga ao padre
Que faça sua vontade
Deixe o amor acontecer…
Além disso é dever
Dos que proclamam a fé
Nenhum ser desmerecer
Seja homem ou mulher
O amor é unissex
Dura Lex, sede Lex
Mais tarde dirá Tom Zé.”
Assombrado e relutante
Floro disse: “tenho medo”
Meretriz disse gritante:
“Pois contarei seu segredo”
Ele disse: “sendo assim
Deixe isso para mim
Resolvo tudo, tão cedo!”
Pressionado e sem saída
Subiu Floro no altar
Com sua saia comprida
O padre veio de lá
A multidão moralista
Falsa como uma ametista
Ansiosa a esperar.
Floro foi ao reverendo
Cochichou ao seu ouvido
O padre enrubescendo
Disse: “atendo ao pedido!”
E a missa começou
Mas o padre não falou
Sobre o tema pretendido.
Falava ele de tudo
Menos sobre o coito gay


Juarez assistia mudo
Joca parecia um rei
Sentiam-se justiçados
Com Floro e o Padre acuados
Meretriz fazia a lei
Após o “ide em paz”
O povo se recolheu
Ao cabaré de Lilás
Foi Floro Bartolomeu
Meretriz com seu cartaz
Joca, Juarez e um rapaz
Enfim, o amor se deu.

Para época em questão
O ocorrido era novo
Foi alvo de agitação
Entre as pessoas do povo
Mas Floro Bartolomeu
Com o poder que recebeu
Tornou comum como um ovo.

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