sábado, 10 de abril de 2010

Um Conto...


Um Conto...

A moça de vinte e quatro anos chegou à porta do restaurante. Vestia jeans e uma blusinha azul-bebê, com uns bordados na gola e nas extremidades das mangas curtas. Carregava, presos à cintura, a pochete, de um lado; e um celular fora de moda, imenso, do outro. Ficou na ponta dos pés, porque não era muito alta, para observar o movimento. Lá no fundo, sozinho numa mesa de quatro lugares, estava quem ela queria.
A moça, morena, bonita de rosto e talvez um pouco magra de corpo, pediu licença e foi-se chegando à mesa do homem mais velho, uns sessenta e poucos, comendo com prazer sua massa de todos os dias.
“Ah, você…”, ele disse, a boca lambuzada, e demorou um pouco para ameaçar levantar-se. A moça de vinte e quatro anos desobrigou-o. Ele agradeceu com um sorriso sem jeito.
“Servida?”, ele continuou, como se houvesse alguma coisa a oferecer. Toda a massa, com a carne picada, já havia migrado da travessa para o prato.
“Obrigado, doutor Mário. Já almocei.”
“Sim, mas um vinho… um cálice”, ele insistiu.
Ela ficou quieta, o que ele interpretou como uma aceitação. A moça puxou uma cadeira e se acomodou.
“Ei, Marrom!”, ele gritou para o garçom. A moça constatou que o garçom era mesmo marrom. “Traz mais uma taça de tinto”, ele pediu de longe, incomodando os rapazes da mesa ao lado. Um deles virou-se e encarou o homem mais velho, que nem percebeu.
“Doutor Mário”, a moça continuou, “eu vim resolver a nossa questão.”
“Mas que questão, Lili? Não temos questão nenhuma. Somos amigos.” O homem diminuíra o ritmo com que sorvia os fios de macarrão. Começou a usar a faca.
“Somos amantes, doutor Mário.”
“O quê? Amantes? Que é que é isso, Lili?” O homem, que era branquelo, pintava os cabelos da cor do garçom, usava suspensório e parecia acima do peso, olhou de lado com medo de que o ouvissem. Baixou a voz. “Nós só transamos uma vez”, ele disse, mostrando o dedo indicador virado para cima. “Uma vezinha.”
“Você queria mais.”
“Bem…”
“E eu também, doutor Mário. Só que eu fingi que não, para não reconhecer que estava apaixonada pelo senhor.”
“Por mim, Lili? Um… agonizante? Um animal pré-histórico que passa o dia sonhando apenas com a hora das refeições, que já não aguenta trabalhar, que morreu e não sabe…”

“O senhor está exagerando, doutor Mário…”
“Não, Lili, eu sou pior do que isso que já falei. Eu estou tão destruído que a única mulher que me dá atenção me chama de doutor.”
“É verdade, me perdoe. Mas na cama eu lhe chamei de você.”
“Você me chamou de Má.”
“Má de Mário. E não Má de malvada.”
“Eu sei que foi Má de Mário! Só faltava você achar que eu sou viado. Aí completava o meu perfil de cocô velho do cavalo do bandido.”
“Pensei em você esses dias todos, Mário…” Ela sorriu. “Está vendo? Não chamei de doutor.”
“Obrigado, Lili. Olha, o Marrom está atrás de você, querendo passar para lhe servir o vinho.”
A moça de vinte e quatro anos ajeitou a cadeira, o garçom passou, e neste momento tilintou o enorme celular dela. O garçom encheu o cálice.
“Lili falando”, disse ela, secamente, ao fone. Ouviu uns segundos e cortou. “Estou ocupada agora, depois ligo pra você.” Guardou o celular, suspirando.
“O namoradão?”, perguntou o homem mais velho.
“Minha irmã. Me chamando pra trabalhar.”
“Ah, é, você me disse: as duas fazem bolos pra fora.”
“Somos economia informal.”
“A salvação do País.”
“Cê acha? Às vezes, a gente preferia ter um emprego, férias, décimo terceiro…”
“Ilusões. Bobagem. Melhor ser dono da própria força de trabalho.”
“Posso voltar ao assunto, Mário?”
“Que assunto?”
“Eu vim aqui para resolvermos o nosso caso”, ela disse, pausadamente, bebendo seu primeiro gole de vinho. Ele cruzou, educado, os talheres no prato, limpou a boca avermelhada, bebeu mais um pouco.
“O que você acha, Lili, que devemos fazer?”
“Amor.”
Silêncio. Ele sorriu pela primeira vez e ela ficou feliz.
“O.k., tudo bem, eu topo”, ele disse. “Mas, com isso, não vamos resolver a questão, vamos?”
“Não. Também não sei como a questão se resolveria. Eu não vim aqui para propor casamento a você.”
O homem mais velho pousou a mão no braço dela, que se arrepiou inteira. Ele nem deu atenção aos comentários naquela mesa dos rapazes.
“Isso, pra mim, é um milagre, Lili. Uma moça tão jovem, tão bonita, séria, trabalhadora, querendo fazer amor com um pré-defunto como eu.”
“Se falar assim eu vou ficar com raiva.”
“Não é a sério. Estou tirando sarro de mim mesmo. É meu jeito. Mas, sabe, a gente não espera ser amado por mulheres mais jovens, quando chega a esta idade.”
“Você é a pessoa mais carinhosa que eu já conheci, doutor, desculpe, Mário.”

“Nem tanto. É que tenho vontade de fazer carinho em você. Mas se prepare, Lili: eu sou um velhinho; coisas desagradáveis podem acontecer numa relação comigo. Eu posso
fracassar. Eu posso me sentir mal. E, no extremo, posso cair fulminado por um enfarte no miocárdio, exatamente na hora…”
“Tenho certeza de que você seria gentil e viraria de lado pra morrer.”
O homem mais velho tirou a mão do braço da moça de vinte e quatro anos e sorriu gostosamente, como não fazia desde muito tempo.
“Eu gosto muito de você, Lili”, ele disse com um pouco mais de luz na expressão. “Perdoe-me essas bobagens que eu falo.”
“Eu amo você, Mário”, ela retribuiu. “Mas eu queria perguntar uma coisa a você, uma coisa íntima, queria que você fosse sincero comigo.”
“Fale logo o que é”, disse ele, com certo sobressalto.
“Eu tenho cheiro de açúcar?”
“De quê?”
“De açúcar. A gente faz tanto bolo que, às vezes, eu tenho a impressão de que as formigas andam atrás de mim.”
“Não, de jeito nenhum…”, ele disse, atônito com a pergunta. “Mas você é doce.”
“Essa foi de doer, Mário.”
“Hum… é verdade. Você me perdoa? De novo?”

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