Rio - Na confusão do trânsito carioca, engarrafei numa transversal da Saara, em frente a Rua Senhor dos Passos, o tempo estancado feito os carros espremidos na mão única.
A memória, sem pé no freio, atropela as vitrines do mercado popular, chapéus a bom preço, bijuterias estilosas como um ovo Fabergé, as colombinas da Turuna, Caçula e papel carbono, arquivo pessoal.
Paisagem de época, não reconheço o Penafiel, um pequeno restaurante dessa várzea onde o prato do dia era servido direto da panela, requintes portugueses na comida tradicional, línguadefumada com feijão manteiga.
Um vazio ensurdecedor alcança a têmpora. É a foto recortada com a mágoa de um atormentado amor. Escafedeuse.
Num desperdício de modernidades, alguns bares, restaurantes, desapareceram feito time pequeno nas últimas divisões. Você não ouve mais falar. Parece aquele parente que saiu pra comprar e cigarros e nunca mais voltou. Se perdem na roda do moinho. Perdi o paladar do gengibre quando selaram de vez as portas do Tangará. Chamava a atenção na estufa, o sanduíche de pão francês com bife à milanesa. Não existiam cadeiras, nem supor mesas forradas. Comer e beber, só em pé, um clássico da boemia diurna. Na mesma quadra, vigiando a entrada do Teatro Rival, cachaça na moringa e jilós temperados na simplicidade do Bar Carlitos. Detalhe, foi deste balcão que nasceu o império do querido Antônio Rodrigues, o dono de todos os Belmontes e mais uma penca de biroscas famosas, nomes preservados pra não gastar de vez a “comigo ninguém pode”, arruda no molho do sal grosso.
A cidade perdendo o assento.
Eu tinha 20 anos quando, curioso, atravessei a Santa Luzia pra observar na esquina um mínimo armazém de líquidos e comestíveis finos. Era o Pardellas, com frutas na entrada e um seleto bar no fim do ambiente. No bolso, a conta certa de comprar a laranja seleta no tabuleiro das ofertas, mas o coração audacioso avançou no biombo das bebidas em doses, barman discreto e um elegante silêncio decorando as paredes.
Sentei num dos dois confortáveis sofás da casa, olhar enfeitiçado com a delicadeza das garrafas, o espelho duplicando taças, refletindo os maltes mais raros, anos de histórias e barris de carvalho. Podia ser melhor? Sim. Quando o ouvido passou a ser o arauto do sentido principal, identifiquei a voz que dividia a palheta daquela pintura. Tom Jobim. Suas palavras, pequenas intervenções que jamais esqueci, o passado na proa da minha vida. Às vezes, a memória falha. Há duas crônicas chamei de Jorge o atencioso Pedro, meu fiel garçom no Lamas, velhas recordações. Errei o nome. Pelo menos, duque na mesma linha, santos da minha bêbada cabeceira.
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