LETÍCIA PERSILES EXPÕE COISAS COTIDIANAS EM CARTAS DE AMOR E SAUDADE
POR BRUNO NEGROMONTE.
A música, o lirismo e o teatro fundem-se de modo harmonioso neste primeiro álbum da atriz e cantora carioca
Em 2014 completou-se duas décadas que o ator francês Jean Barrault faleceu aos 83 anos. Tal ator disse certa vez que o teatro seria o primeiro soro que o homem inventou para proteger-se da angústia. Já o multifacetado Nietzsche costumava dizer que sem música a vida seria um erro. Além destes, há também o poeta e escritor português Fernando Pessoa (ou Álvaro de Campos, se preferirmos identificá-lo por seu heterônomo) que chegou a afirmar todas as cartas de amor são ridículas pois não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. A citação desses nomes aparentemente sem nexo e lógica alguma fundem-se de modo harmonioso quando a alquimista Letícia Persiles mostra-se capaz de misturar esses e outros relevantes nomes do século XX em sua arte, ao seu som e a suas ideias de modo bastante ímpar.
Carioca, a atriz e cantora vem constituindo um trabalho adornado por características bastante peculiares nas diversas minúcias que constituem as atividades que executa, dinâmica faz-se capaz de trazer elementos do folclore nordestino (sob influências de histórias populares e nomes como Ariano Suassuna) em plena comunhão com ícones contemporâneos e cosmopolitas como é o caso do compositor alemão Kurt Weill. “As cartas de amor e saudade” é um disco que traz junto a si a possibilidade de destrinchar-se em diversos sem perder a unidade, uma vez que neste contexto é possível vislumbrar a fusão de modo uníssono de diversos gêneros musicais ao longo das oito faixas presentes.
Dentre os aspectos existentes é possível observar elementos da música flamenca junto a outros da cultura popular nordestina a partir de melodias muito bem arregimentadas. Então não é de se estranhar a capacidade de simbiose que “As cartas de amor e saudade” traz arraigada. Acredite, depois da audição deste álbum você por um instante pode vir a acreditar que a região do Crato cearense e Andaluzia, a famosa cidade espanhola, são cidades vizinhas.
Vale salientar que a sua carreira como atriz teve início quando a atriz estava com onze anos e cerca de quatro anos depois Letícia já teve a oportunidade de formar a sua primeira banda. No entanto só por volta de 2009 foi que ela chegou a ganhar relativo destaque a frente banda Manacá ao lado dos músicos Luiz César Pintoni (guitarra), Daniel Wally (baixo) e Bruno Baiano (bateria) formando assim um dos quartetos de maior destaque da cena musical indie do Rio de Janeiro à época, chegando inclusive a gravar um disco. Vem desse período a participação de Persiles na minissérie global Capitu, interpretando a personagem principal, o que acabou gerando a possibilidade do quarteto ganhar espaço na trilha sonora da produção televisiva.
Agora, cinco anos depois, a artista vem apresentando o seu primeiro trabalho solo imbuído por toda essa vasta experiência acumulada ao longo dos anos e que foram fundamentais para que a mesma pudesse adornar os mais distintos adjetivos à sua arte. Sob um olhar que transpassa a beleza de sua tonalidade esverdeada, Letícia traduz em suas letras e canções de modo bastante vigoroso todo o seu universo particular em letras que abordam os mais distintos temas como é o caso de “Tamarametista” que remete-nos a um tipo de amor caracterizado pela entrega total. Os ditos populares mostram-se em perfeita sincronia com sabores em uma gastronomia aguçada por sentidos e sensações.
Já a reflexiva “No passo do passarinho” traz a experiência como palavra-chave, retratando a valorosa e instigante descoberta de um animal que acaba de sair do seu ovo e passa a caminhar com as próprias pernas. Dentre as regravações estão as faixas “Quem sabe”, composta por Carlos Gomes no século XIX, “Youkali Tango” escrita pelo já citado compositor alemão Kurt Weill e registrada em 1934; sem contar com a canção “Dos Cruces”, da dupla espanhola Carmello Larrea e Antonio Molina. O álbum ainda conta com mais duas canções: “Os versos e as horas” e “Catavento”.
A belíssima arte do álbum vem sob a assinatura de André Luiz Machado a partir de fotos tiradas por Valkiria Persiles, mãe da atriz e cantora. As ilustrações foram confeccionadas pela própria Letícia, que também participou da produção do álbum ao lado de Toninho Ferragutti e Chico Neves, conceituado produtor do cenário pop nacional. Neves nas últimas duas décadas,foi responsável, dentre tantos, pela produção de álbuns como “O Dia em que Faremos Contato” do cantor e compositor Lenine e “Bloco do Eu Sozinho”, da banda carioca Los Hermanos. Os arranjos de “As cartas de amor e saudade” ficaram a cargo de Bebê Kramer e Ferragutti (que também executa acordeon).
Singelo, porém vigoroso, este projeto apresenta uma Letícia imersa em suas ideias em uma peculiar sonoridade. Os híbridos acordes que embalam as divagações da compositora sobre os mais variados temas fazem de “As cartas de amor e saudade” um álbum audacioso onde a artista apresenta-se de modo visceral e único a partir de composições intrinsecamente arregimentadas por letras bem escritas e uma sonoridade que dá ao disco uma unidade precisa. De modo singular cada faixa borda no disco os mais distintos temas e isso faz com que consequentemente seja também vivenciada as mais diversas sensações adornadas nos acordes executados brilhantemente pelos músicos que a acompanha.
“As cartas de amor e saudade” chega para coroar em definitivo um trabalho que consegue abranger as entranhas de nossa cultura desnudando-as de conceitos e rótulos a partir do dissecamento da própria artista. Desprovida de qualquer vaidade Letícia Persiles desnuda-se e entrega-se, de corpo e alma, à Deusa música demostrando ter muito mais que olhos de ressaca.
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