O FEMINISMO DE MACHADO DE ASSIS
Pedro J. Bondaczuk
O professor e pesquisador de literatura brasileira, Mauro Rosso – destacado ensaísta e escritor, além de palestrante e conferencista – publicou, em 2008 (não consegui precisar a data exata), na revista de literatura e artes “Germina”, instigante matéria, intitulada “Machado e a mulher”. O texto em questão, informativo e esclarecedor, trata de um dos aspectos que mais chamam a atenção na prolífica e incomparável obra do nosso “Bruxo do Cosme Velho”. Ou seja, o que muitos pesquisadores caracterizam como seu “feminismo”. Como tudo o que se refere ao nosso maior escritor, pioneiro em vários sentidos, quer no que se refere a estilo quer, e principalmente, à sua variada e eclética temática, esse aspecto merece, também, análise cuidadosa, atenta, criteriosa e a mais didática possível, para que possa ser devidamente assimilado e valorizado pelo leitor.
Mauro Rosso inicia, assim, seu citado artigo: “Machado sempre escreveu sobre mulheres e para mulheres. Os amores e frustrações femininos eram seus temas constantes. A mulher sempre foi personagem primordial da sua ficção. Em Machado, o feminino confirma-se como uma categoria literária – eis um sinóptico intróto que muito bem caracteriza um dos cernes da sua obra ficcional (...)”. “Quer dizer, então, que Machado de Assis era feminista convicto!”, concluirá o atento leitor, com base nesta (e em outras tantas informações). Bem, depende de que feminismo estamos falando. Se estivermos pensando no movimento internacional organizado, sobretudo, na Europa, de cunho ideológico, que lutou (e luta) pela irrestrita igualdade de direitos e deveres entre os dois gêneros, tal conclusão será um tanto açodada, se não exagerada. Afinal, o escritor era fruto da mentalidade do seu tempo, mesmo que vários e vários passos adiante da esmagadora maioria de seus contemporâneos. Mas se pensarmos, exclusivamente, pelo lado do pioneirismo, pelo da valorização da mulher como ser humano inteligente e sensível que é, e como tema, portanto, de sua literatura, essa caracterização é não somente válida, como oportuna.
Mauro Rosso, em outro parágrafo do seu lúcido artigo, lança luz sobre isso: “Sem se constituir propriamente em explícito ‘defensor dos direitos da mulher’ – muito menos um ‘dialético feminista’ – Machado era convicto de que as mulheres deviam ser instruídas e não permanecer atadas á vida doméstica, ao mesmo tempo sempre preocupado e atento para as necessidades emocionais, afetivas e mesmo sexuais das mulheres. Desde o início da sua gestação ficcional em prosa, Machado traçou caminhos próprios e peculiares para tratar das relações entre os homens e as mulheres muito além da visão ingênua dos românticos, do discurso dos realistas e naturalistas, injetando em sua obra muitas sementes da modernidade: criou um estilo de literatura não apenas de observação das pessoas, mas, sobretudo, de interpretação, expondo as pequenas coisas, as passagens a princípio inocentes, um outro lado, que muitas vezes aludia á presença, sempre insidiosa, do inconsciente. Sempre foi um autor interessado em prospectar as paixões humanas, em dissecar-lhes as intimidades, em levantar questões e torná-las públicas pela voz de seus personagens. Em Machado, o narrativo e o descritivo deu lugar ao psicológico, ao íntimo – transcendendo o visível, o corpóreo, o material (...)”.
Embora seja até acaciano para os leitores familiarizados com informações históricas, lembro (para os que sabem) e informo (aos que desconhecem) que no tempo de vida de Machado de Assis não havia nada sequer parecido com o Dia Internacional da Mulher e nem se cogitava a esse propósito e não só no Brasil, como na maior parte do mundo, salvo em um ou outro país, notadamente da Europa, como Inglaterra, França e os estados escandinavos. A data comemorativa foi instituída, apenas, dois anos após a morte do escritor. Nunca é demais saber, ou reforçar, a origem dessa celebração (que já tratei em outras crônicas, mas que é sempre oportuno reiterar).
Em 8 de março de 1857, funcionárias de uma indústria têxtil de Nova York, inconformadas com a desumana exploração de que vinham sendo vítimas, decidiram sair às ruas, em passeata, para protestar e, assim, chamar a atenção da sociedade para a sua terrível situação. Embora épico, o espetáculo não deixava de ter seu lado patético. Era comovente, e ao mesmo tempo chocante, a visão daquelas mulheres corajosas, destemidas e determinadas, cobertas de andrajos, com vestidos esfarrapados e pés descalços, mas de cabeça erguida, a clamar, a exigir, a cobrar justiça.
Naquela época, sequer se cogitava de qualquer legislação que protegesse a integridade física e mental dos operários, não importava de que sexo, que eram tratados pior do que animais de carga ou do que as máquinas das indústrias. As jornadas de trabalho estendiam-se, não raro, por 16 horas ou mais, sem férias, repouso remunerado ou qualquer outra espécie de proteção.
Havia casos de trabalhadores que eram forçados a dormir nas próprias fábricas, ao lado de tornos ou teares, para cumprir metas de produção estabelecidas pelos patrões, geralmente exageradas e abusivas. Teoricamente “livres”, os operários de fins do século XIX eram tratados pior do que os escravos. E todos achavam esse procedimento “normal”.
Nesse contexto, de abuso e de exploração, as mulheres eram duplamente injustiçadas. Além de cumprirem as mesmas e estafantes jornadas de seus colegas masculinos – o que lhes minava a saúde e roubava anos e anos de vida – ainda recebiam salários irrisórios, ínfimos, ridículos, que correspondiam à metade dos que eram pagos aos companheiros homens que exerciam as mesmas funções.
Quando as corajosas e desesperadas participantes da manifestação de protesto de Nova York, nesse fatídico 8 de março de 1857, voltaram à tecelagem, para avaliar o resultado político do seu ato público, foram criminosamente punidas. Não com suspensão, desconto de salários ou demissão sumária, o que já seria inominável abuso. Sua punição, no entanto, foi muito, muitíssimo pior. As ousadas trabalhadoras pagaram com a vida pelo “atrevimento” de reivindicar direitos.
A fábrica em questão foi, conforme se comprovou posteriormente, intencionalmente incendiada, a mando dos patrões, com as operárias rebeldes no seu interior. As chances de escapar com vida eram mínimas, quase nulas. Poucas tiveram essa felicidade. Tratou-se, logicamente, de episódio de grande repercussão, que Hollywood, inclusive, transformou em filme de grande sucesso de bilheteria.
Resultado dessa sinistra e covarde revanche patronal: 139 trabalhadoras mortas, carbonizadas, sacrificadas somente por não se conformarem com a desumana exploração de que eram vítimas! Foi em homenagem a essas heróicas mártires que a Conferência Internacional das Mulheres Socialistas, realizada em Copenhague, em 1910, por proposta da ativista Clara Zelkin, instituiu o 8 de março de cada ano como o Dia Internacional da Mulher.
Quando esse fato ocorreu, Machado de Assis estava com dezessete anos de idade, a meses de completar dezoito. Não creio que tenha tomado conhecimento dessa trágica notícia, embora fosse, desde moço, pessoa muito bem informada. Tenho minhas dúvidas até se algum jornal brasileiro veiculou a informação. Intuo que não. O interesse de Machado de Assis pelas mulheres (e não me refiro ao natural e instintivo que nós, homens, temos por elas, mas o que se refere, sobretudo, ao seu papel social e profissional), portanto, não teve nada a ver com qualquer tipo de doutrinação, de influência externa, de propaganda de eventual organização feminista (que, aliás, nem existia no Brasil, país que ainda hoje é sumamente machista, imaginem como era no século XIX!!). Foi intuitivo, lógico, humano e racional, contrariando, inclusive, a patuléia ignara e chocando, por conseqüência, os descerebrados, incapazes de pensar por si próprios que se escandalizam com o que fuja à sua compreensão.