quinta-feira, 29 de março de 2012

UMA CRONICA DE CLARICE LISPECTOR...


Lúcio, estou com saudade de você, corcel de fogo que você era, sem limite para o seu galope.
Saudade eu tenho sempre. Mas, saudade tristíssima, duas vezes.
A primeira quando você repentinamente adoeceu, em plena vida, você que era vida. Não morreu da doença. Continuou vivendo, porém era homem que não escrevia mais, ele que até então escrevera por uma compulsão eterna gloriosa. E depois da doença, não falava mais, ele que já me dissera das coisas mais inspiradas que ouvidos humanos poderiam ouvir. E ficara com o lado direito todo paralisado. Mais tarde usou a mão esquerda para pintar: o poder criativo nele não cessara.
Mudo ou grunhindo, só os olhos se estrelavam, eles que sempre haviam faiscado de um brilho intenso, fascinante e um pouco diabólico.
De sua doença restaria também o sorriso: esse homem que sorria para aquilo que o matava. Foi homem de se arriscar e de pagar o alto preço do jogo. Passou a transportar para as telas, com a mão esquerda (que, no entanto, era incapaz de escrever, só de pintar) transparência e luzes e levezas que antes ele não parecia ter conhecido e ter sido iluminado por elas: tenho um quadro, de antes da doença, que é quase totalmente negro. A luz lhe viera depois das trevas da doença.
A segunda saudade já foi perto do fim.
Algumas pessoas amigas dele estavam na ante-sala de seu quarto no hospital e a maioria não se sentiu com força de sofrer ainda mais ao vê-lo imóvel, em estado de coma.
Entrei no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado como um personagem de El Greco. Havia a Beleza em seus traços.
Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha adolescência. Naquela época ele me ensinava como se conhecem as pessoas atrás das máscaras, ensinava o melhor modo de olhar a lua. Foi Lúcio que me transformou em “mineira”: ganhei diploma e conheço os maneirismos que amo nos mineiros.
Não fui ao velório, nem ao enterro, nem à missa porque havia dentro de mim silêncio demais. Naqueles dias eu estava só, não podia ver gente: eu vira a morte.
Estou me lembrando de coisas. Misturo tudo. Ora ouço ele me garantir que eu não tivesse medo do futuro porque eu era um ser com a chama da vida. Ora vejo-nos alegres na rua comendo pipocas. Ora vejo-o encontrando-se comigo na ABBR, onde eu recuperava os movimentos de minha mão queimada e onde Lúcio, Pedro e Míriam Bloch chamavam-no à vida. Na ABBR caímos um nos braços do outro.
Lúcio e eu sempre nos admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu com o que ele chamava de “vida apaixonante”. Em tantas coisas éramos tão fantásticos que, se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado.
Helena Cardoso, você que é uma escritora fina e que sabe pegar numa asa de borboleta sem quebrá-la, você que é irmã de Lúcio para todo o sempre, por que não escreve um livro sobre Lúcio? Você contaria de seus anseios e alegrias, de suas angústias profundas, de sua luta com Deus, de suas fugas para o humano, para os caminhos do Bem e do Mal. Você, Helena, sofreu com Lúcio e por isso mesmo mais o amou.
Enquanto escrevo levanto de vez em quando os olhos e contemplo a caixinha de música antiga que Lúcio me deu de presente: tocava como em cravo a Pour Élise. Tanto ouvi que a mola partiu. A caixinha de música está muda? Não. Assim como Lúcio não está morto dentro de mim.

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