Quem olhasse para aqueles três, entrando e saindo do automóvel velho (as duas mulheres sempre com muita dificuldade), logo se perguntaria qual a relação entre eles. O rapaz, motorista e dono do veículo, moreno escuro comprido e magro, sorriso de luz, roupa branca impecável de profissional de saúde, excedia-se na cortesia às duas mulheres, mais estropiadas do que idosas, e que talvez nem tivessem passado dos setenta. A mais alta e muito magra, brancosa, cabelo louro pintado mas de raízes brancas, vestido de velhinha, preto de bolotas esverdeadas; a outra, negra quase azul, ombros sugados, cabelo acaju espichado, blusa lilás e saia rosa curta, absolutamente inadequada à idade, via-se que emagrecera muito ultimamente.
O rapaz, pouco mais de vinte anos, apoiando as duas para fazê-las descer e subir do carro com mais conforto, chamava-as por nomes estranhos: dirigia-se à branca como A Velha Chama; e à outra, A Negra Solidão.
Mas não havia outro jeito de comunicar-se com elas, as duas nem admitiam isso, até já se haviam esquecido dos seus nomes próprios.
Aquele ponto da cidade era difícil de estacionar: o centrão, no chamado Recife Antigo, sempre de poucas vagas e muitos guardas de trânsito; as ruas eram tomadas de prédios baixos, estilo Rive Gauche, do começo do século passado; e, em ruas próximas, outros prédios parecidos, de arquitetura portuguesa, edificações ainda mais velhas, do final do século 19 – tudo isso deixava as duas mulheres embevecidas, emocionadas, tontas.
“Olha lá, Negra Solidão”, dizia A Velha Chama apontando uma janela. “A gente passou ali três anos, foi quando Hermes La Porte quase me ensinou a falar português direito…”, ria a velhinha, o braço esticado, só pele e osso.
“Não era a “Blu Valter” ali?”, perguntou a negra, referindo-se a uma das muitas boates da época, a Blue Water.
“Sei não, menina; minha cabeça já era”, riu a outra. “Os prédios são os mesmos, mas agora estão aviadados, com essas cores gritantes, horrorosas… “ A Negra Solidão não era de poupar palavras.
As duas se viraram ao mesmo tempo para o rapazinho moreno sorridente:
“Você é um santinho, meu filho”, disse A Velha Chama. “A gente estava querendo fazer essa visita há muitos anos.”
“Sei que não foi fácil convencer o dono do botequim”, completou A Negra Solidão, referindo-se ao diretor do hospital onde as duas praticamente moravam, pacientes em tempo integral, portadoras terminais do HIV. O maior segredo do hospital, aliás, era a identidade de quem pagava, há anos, o tratamento das duas ex-prostitutas.
Péricles, o enfermeiro moreno e simpático, fizera-se uma espécie de neto daquelas senhoras, fontes de desarmonia no Hospital Lusitano. Os internos eram poucos, em geral gente rica, homens e mulheres, que as famílias preferiam entregar a cuidados médicos intensivos e sobretudo permanentes, como uma forma de se livrar deles.
Assim, A Velha Chama e A Negra Solidão, duas putas da pior zona do Recife, a do Cais do Porto, conviviam com esclerosados Albuquerque, Cavalcanti e Pessoa de Melo, além de outras famílias tradicionais.
Houve conflitos. Dona Hermínia Buarque Maciel, por exemplo, não admitia a proximidade das duas mulheres. A Velha Chama poderia até ser tolerada, tinha a pele branca, mas uma crioula, jamais! Nem que fosse princesa do país mais rico da África!
Dona Hermínia, cadeirante, nas últimas, recuperando-se de um AVC, dissera, na lata, À Negra Solidão:
“Saia de perto de mim, meretriz! Vou pedir aos meus filhos para me mandarem a um hospital onde não existam rampeiras!”
A Negra Solidão, com um histórico invejável de humilhações, ficou quieta. Um dia, no entanto, foi exatamente ela quem socorreu a nobre senhora, caída da cadeira de rodas após uma das muitas isquemias.
Dias depois, dona Hermínia cruzara com a negra no refeitório e gritara, dedo trêmulo em riste:
“Eu soube que você me amparou, meretriz, quando eu caí com meu ataque. Quero que tenha certeza de que eu não faria a mesma coisa por você!”
“Nunca duvidei disso”, respondeu A Negra Solidão. “Até porque a senhora não pode, fica presa na cadeira de rodas”.
A amizade do enfermeiro Péricles, o garoto de ouro de sorriso iluminado, acontecera naturalmente. Ele, de família humilde, aproximara-se de quem lhe era mais familiar, duas mulheres do povo em um hospital muito chique.
Elas tentaram, de todas as formas, convencê-lo a descobrir quem pagava suas contas. Afinal, estavam doentes há cinco anos e aquele era um lugar de milionários.
O rapaz até que tentou, mas o segredo continuava inviolável. O pessoal da administração o aconselhou a desistir da pesquisa, “se quiser preservar o emprego”.
As duas mulheres, no entanto, gostariam de fazer algo além de permanecer deitadas e passear por corredores, sob olhares preconceituosos. Durante dois anos, insistiram com todo mundo, médicos e enfermeiros, que precisavam – além de saber quem pagava a conta – dar uma volta pelo Recife Antigo.
“O quadro das senhoras é muito grave”, ponderava o doutor Silvino, e logo esquecia de tratá-las de senhoras. “Vocês praticamente não têm sistema imunológico. Como posso deixar que passeiem pelo reino das bactérias?”, perguntava o médico, que era manso e bondoso, bigodinho fino sobre lábios mais finos ainda.
Mas o tempo ia passando, as duas não morriam, e afinal conseguiram licença e o apoio de Péricles para uma excursão pelo Bairro do Recife, ao lado do porto, onde, até os anos setenta, o baixo meretrício reinava pleno, com suas mulheres simples e desprezíveis, cafetões clássicos, de ternos brancos e bigodes, viados assessores e vitrolas de fichas.
Foi exatamente nessas vitrolas que A Velha Chama e A Negra Solidão foram rebatizadas.
Numa das noitadas (na verdade, noitadas aconteciam todas as noites), alguém conseguiu fazer tocar “Corcovado”, de Tom Jobim, bossa-nova que não tinha muito a ver com o decadente recinto. Mas algumas mulheres, ao ouvir os acordes, logo saíram pra dançar, puxando os fregueses, a maioria marinheiros gringos, recém-chegados ao porto. A mais animada era uma brancosa, mais velha que a maioria das meninas (devia ter, na época, uns trinta e poucos anos).
Leve e graciosa, ela fazia os clientes rodopiarem pelo salão, ouvindo:
Quero a vida sempre assim
Com você perto de mim
Até o apagar da velha chama
“A Velha Chama é ela!”, decretou Hermes La Porte, estudante de Direito, 20 anos, branco de olhos verdes, frequentador contumaz da zona. O rapaz estava inspirado e foi além: esperou ”Corcovado” acabar e pôs ficha numa música realmente adequada a um baixo meretrício: Nelson Gonçalves cantando Adelino Moreira. Hermes La Porte puxou para dançar, então, aquela negrinha linda, magra e espevitada, seios pontudos, e saiu dançando com ela:
É… cantando que carrego a minha cruz
Abraçado ao amigo violão
E a noite de luar já não tem luz
Quem me abraça é a negra solidão
“Vai, dança comigo e me abraça, Negra Solidão!”, dizia Hermes La Porte, já trôpego, para a mulher linda, que lhe respondia com um beijo na boca, raríssimo presente que prostitutas não dão a qualquer um.
E A Negra Solidão sorria, assim como sorria A Velha Chama, naquelas noites delirantes de boemia do Recife, onde jamais importava o dia seguinte, mas o minuto vivido.
Foi a partir desse episódio que as duas prostitutas carregaram esses apelidos para o resto da vida.
“Vocês nunca me contaram isso”, disse o garoto Péricles. “E eu sempre me perguntava o porquê dos nomes… Lá no hospital ninguém sabe dessa história!”
“E vai continuar não sabendo, menino”, decretou A Negra Solidão. “Isso é coisa nossa. Foi só putaria, a nossa vida, mas é nossa…”
“Ela tem razão”, completou A Velha Chama. “É coisa íntima, ninguém ia entender, acham que não somos nada, não temos direito de sentir as coisas, de sofrer de paixão…”
“Eu morro de saudades de Hermes La Porte”, disse A Negra Solidão. “E nem devia, porque ele era como a maioria dos estudantes que iam à zona. Não queriam muito saber da gente, não trepavam, era só pra conhecer o ambiente… Eles diziam: “fazer pesquisa”. Coisa esquisita, né? Hermes La Porte tentou me ensinar a falar português certo. Sabe, eu acompanhava uma música estrangeira de muito sucesso na época, e cantava: “Quanta lameira! Guarrira! Quanta lameira!” Eu achava que a música falava de uma coisa suja, lamacenta, e que “Guarrira” era nome de mulher, mas Hermes La Porte me explicou: o certo é “Guantanamera”, nome de quem nasce num lugar chamado Guantânamo, em Cuba; e “guajira”, escrito com um jota que se fala como dois erres, é um tipo de música cubana, como aqui tem samba, xaxado… Porra: Hermes La Porte sabia tudo… Quase que ele me ensinou a falar direito, vivia corrigindo a gente…”
“Tu te lembras de Cristo Paraguaio”?, perguntou A Velha Chama.
“Se não… O Cristo Paraguaio era um cara que estudava matemática, os amigos diziam que era o homem mais inteligente da cidade, e ele parecia, ao mesmo tempo, Cristo e paraguaio… Magro, alto, a cara paraguaia de sofrimento… Era esquisito… Ele bebia e apagava, mas já acordava cantando com o pessoal, direto, saía do sonho para o samba, nunca vi daquilo…”
“E o português lourinho?”, perguntou A Velha Chama, sorrindo. “Era um estudante também, lembra? Era amigo de Hermes La Porte. Duquinha, aquele viadão grande, quase dois metros, se apaixonou pelo portuguesinho e os amigos do rapaz cantavam, como se fosse num coro de igreja (como era mesmo o nome do português? Marinho? Martinho?):
Martinho beijou Duquinha
Martinho beijou Duquinha
Bem no meio da boquinha
“Que tempo bom, não?” Os olhos d’A Velha Chama brilharam.
“Aquele tempo era uma merda!”, disse A Negra Solidão. “A gente era puta escrota no baixo meretrício do Recife. Peguei e passei pros clientes blenorragia, cancro mole, cancro duro e depois também peguei Aids… Não sei se passei. Devo ter… E com tu também aconteceu a mesma coisa, Velha Chama. Tempo bom é hoje: a gente devia estar jogada no lixo e algum anjo resolveu pagar o hospital mais caro do Recife. Me disseram que o dinheiro chega todo mês no mesmo dia que a nossa conta fecha. Quem será, hem?”
“Hermes La Porte não é. Nunca mais soube dele…”, disse A Velha Chama. “Também não tinha por que.”
“Tinha gente apaixonada por tu e por mim”, respondeu A Negra Solidão. “Mas não sei de ninguém que enriqueceu a ponto de sustentar duas putas safadas morrendo num lugar caro…”
“Pera aí, amiga, eu não sou puta safada, não”, reagiu A Velha Chama.
“E o que a gente é?”, perguntou A Negra Solidão.
“Meninas, está na hora de voltar”, interrompeu Péricles. “Vocês já recordaram o passado, já viram os prédios, se divertiram… Doutor Silvino só me deu duas horas…”
“E não era melhor a gente virar a noite aqui, encher a cara e morrer já amanhã?”, perguntou A Negra Solidão.
“Para com isso!”, disse A Velha Chama. “Vamos ficar até a última hora que Deus quiser. Só te peço uma coisa, menino Péricles: não deixe de tentar descobrir quem paga nossa conta…”
“Tá bom, tá bom, mocinhas”, disse o rapaz. “Agora entrem no carro e vamos voltar. Hoje tem capítulo bom daquela novela…”
“Aquela novela é só putaria!”, falou alto A Negra Solidão. “Tão acabando com as putas. Homem nenhum precisa mais da gente, vai dormir na casa da namorada direto!”
“Calma, mulher, calma”, pediu A Velha Chama. “Se não fosse tu, quem é que ia suportar a negra solidão?”
O enfermeiro e a velhinha de minissaia olharam para a senhora brancosa, esquálida, com um sorriso irônico no rosto, e preferiram não falar mais nada.
http://fernandoportela.wordpress.com/
O rapaz, pouco mais de vinte anos, apoiando as duas para fazê-las descer e subir do carro com mais conforto, chamava-as por nomes estranhos: dirigia-se à branca como A Velha Chama; e à outra, A Negra Solidão.
Mas não havia outro jeito de comunicar-se com elas, as duas nem admitiam isso, até já se haviam esquecido dos seus nomes próprios.
Aquele ponto da cidade era difícil de estacionar: o centrão, no chamado Recife Antigo, sempre de poucas vagas e muitos guardas de trânsito; as ruas eram tomadas de prédios baixos, estilo Rive Gauche, do começo do século passado; e, em ruas próximas, outros prédios parecidos, de arquitetura portuguesa, edificações ainda mais velhas, do final do século 19 – tudo isso deixava as duas mulheres embevecidas, emocionadas, tontas.
“Olha lá, Negra Solidão”, dizia A Velha Chama apontando uma janela. “A gente passou ali três anos, foi quando Hermes La Porte quase me ensinou a falar português direito…”, ria a velhinha, o braço esticado, só pele e osso.
“Não era a “Blu Valter” ali?”, perguntou a negra, referindo-se a uma das muitas boates da época, a Blue Water.
“Sei não, menina; minha cabeça já era”, riu a outra. “Os prédios são os mesmos, mas agora estão aviadados, com essas cores gritantes, horrorosas… “ A Negra Solidão não era de poupar palavras.
As duas se viraram ao mesmo tempo para o rapazinho moreno sorridente:
“Você é um santinho, meu filho”, disse A Velha Chama. “A gente estava querendo fazer essa visita há muitos anos.”
“Sei que não foi fácil convencer o dono do botequim”, completou A Negra Solidão, referindo-se ao diretor do hospital onde as duas praticamente moravam, pacientes em tempo integral, portadoras terminais do HIV. O maior segredo do hospital, aliás, era a identidade de quem pagava, há anos, o tratamento das duas ex-prostitutas.
Péricles, o enfermeiro moreno e simpático, fizera-se uma espécie de neto daquelas senhoras, fontes de desarmonia no Hospital Lusitano. Os internos eram poucos, em geral gente rica, homens e mulheres, que as famílias preferiam entregar a cuidados médicos intensivos e sobretudo permanentes, como uma forma de se livrar deles.
Assim, A Velha Chama e A Negra Solidão, duas putas da pior zona do Recife, a do Cais do Porto, conviviam com esclerosados Albuquerque, Cavalcanti e Pessoa de Melo, além de outras famílias tradicionais.
Houve conflitos. Dona Hermínia Buarque Maciel, por exemplo, não admitia a proximidade das duas mulheres. A Velha Chama poderia até ser tolerada, tinha a pele branca, mas uma crioula, jamais! Nem que fosse princesa do país mais rico da África!
Dona Hermínia, cadeirante, nas últimas, recuperando-se de um AVC, dissera, na lata, À Negra Solidão:
“Saia de perto de mim, meretriz! Vou pedir aos meus filhos para me mandarem a um hospital onde não existam rampeiras!”
A Negra Solidão, com um histórico invejável de humilhações, ficou quieta. Um dia, no entanto, foi exatamente ela quem socorreu a nobre senhora, caída da cadeira de rodas após uma das muitas isquemias.
Dias depois, dona Hermínia cruzara com a negra no refeitório e gritara, dedo trêmulo em riste:
“Eu soube que você me amparou, meretriz, quando eu caí com meu ataque. Quero que tenha certeza de que eu não faria a mesma coisa por você!”
“Nunca duvidei disso”, respondeu A Negra Solidão. “Até porque a senhora não pode, fica presa na cadeira de rodas”.
A amizade do enfermeiro Péricles, o garoto de ouro de sorriso iluminado, acontecera naturalmente. Ele, de família humilde, aproximara-se de quem lhe era mais familiar, duas mulheres do povo em um hospital muito chique.
Elas tentaram, de todas as formas, convencê-lo a descobrir quem pagava suas contas. Afinal, estavam doentes há cinco anos e aquele era um lugar de milionários.
O rapaz até que tentou, mas o segredo continuava inviolável. O pessoal da administração o aconselhou a desistir da pesquisa, “se quiser preservar o emprego”.
As duas mulheres, no entanto, gostariam de fazer algo além de permanecer deitadas e passear por corredores, sob olhares preconceituosos. Durante dois anos, insistiram com todo mundo, médicos e enfermeiros, que precisavam – além de saber quem pagava a conta – dar uma volta pelo Recife Antigo.
“O quadro das senhoras é muito grave”, ponderava o doutor Silvino, e logo esquecia de tratá-las de senhoras. “Vocês praticamente não têm sistema imunológico. Como posso deixar que passeiem pelo reino das bactérias?”, perguntava o médico, que era manso e bondoso, bigodinho fino sobre lábios mais finos ainda.
Mas o tempo ia passando, as duas não morriam, e afinal conseguiram licença e o apoio de Péricles para uma excursão pelo Bairro do Recife, ao lado do porto, onde, até os anos setenta, o baixo meretrício reinava pleno, com suas mulheres simples e desprezíveis, cafetões clássicos, de ternos brancos e bigodes, viados assessores e vitrolas de fichas.
Foi exatamente nessas vitrolas que A Velha Chama e A Negra Solidão foram rebatizadas.
Numa das noitadas (na verdade, noitadas aconteciam todas as noites), alguém conseguiu fazer tocar “Corcovado”, de Tom Jobim, bossa-nova que não tinha muito a ver com o decadente recinto. Mas algumas mulheres, ao ouvir os acordes, logo saíram pra dançar, puxando os fregueses, a maioria marinheiros gringos, recém-chegados ao porto. A mais animada era uma brancosa, mais velha que a maioria das meninas (devia ter, na época, uns trinta e poucos anos).
Leve e graciosa, ela fazia os clientes rodopiarem pelo salão, ouvindo:
Quero a vida sempre assim
Com você perto de mim
Até o apagar da velha chama
“A Velha Chama é ela!”, decretou Hermes La Porte, estudante de Direito, 20 anos, branco de olhos verdes, frequentador contumaz da zona. O rapaz estava inspirado e foi além: esperou ”Corcovado” acabar e pôs ficha numa música realmente adequada a um baixo meretrício: Nelson Gonçalves cantando Adelino Moreira. Hermes La Porte puxou para dançar, então, aquela negrinha linda, magra e espevitada, seios pontudos, e saiu dançando com ela:
É… cantando que carrego a minha cruz
Abraçado ao amigo violão
E a noite de luar já não tem luz
Quem me abraça é a negra solidão
“Vai, dança comigo e me abraça, Negra Solidão!”, dizia Hermes La Porte, já trôpego, para a mulher linda, que lhe respondia com um beijo na boca, raríssimo presente que prostitutas não dão a qualquer um.
E A Negra Solidão sorria, assim como sorria A Velha Chama, naquelas noites delirantes de boemia do Recife, onde jamais importava o dia seguinte, mas o minuto vivido.
Foi a partir desse episódio que as duas prostitutas carregaram esses apelidos para o resto da vida.
“Vocês nunca me contaram isso”, disse o garoto Péricles. “E eu sempre me perguntava o porquê dos nomes… Lá no hospital ninguém sabe dessa história!”
“E vai continuar não sabendo, menino”, decretou A Negra Solidão. “Isso é coisa nossa. Foi só putaria, a nossa vida, mas é nossa…”
“Ela tem razão”, completou A Velha Chama. “É coisa íntima, ninguém ia entender, acham que não somos nada, não temos direito de sentir as coisas, de sofrer de paixão…”
“Eu morro de saudades de Hermes La Porte”, disse A Negra Solidão. “E nem devia, porque ele era como a maioria dos estudantes que iam à zona. Não queriam muito saber da gente, não trepavam, era só pra conhecer o ambiente… Eles diziam: “fazer pesquisa”. Coisa esquisita, né? Hermes La Porte tentou me ensinar a falar português certo. Sabe, eu acompanhava uma música estrangeira de muito sucesso na época, e cantava: “Quanta lameira! Guarrira! Quanta lameira!” Eu achava que a música falava de uma coisa suja, lamacenta, e que “Guarrira” era nome de mulher, mas Hermes La Porte me explicou: o certo é “Guantanamera”, nome de quem nasce num lugar chamado Guantânamo, em Cuba; e “guajira”, escrito com um jota que se fala como dois erres, é um tipo de música cubana, como aqui tem samba, xaxado… Porra: Hermes La Porte sabia tudo… Quase que ele me ensinou a falar direito, vivia corrigindo a gente…”
“Tu te lembras de Cristo Paraguaio”?, perguntou A Velha Chama.
“Se não… O Cristo Paraguaio era um cara que estudava matemática, os amigos diziam que era o homem mais inteligente da cidade, e ele parecia, ao mesmo tempo, Cristo e paraguaio… Magro, alto, a cara paraguaia de sofrimento… Era esquisito… Ele bebia e apagava, mas já acordava cantando com o pessoal, direto, saía do sonho para o samba, nunca vi daquilo…”
“E o português lourinho?”, perguntou A Velha Chama, sorrindo. “Era um estudante também, lembra? Era amigo de Hermes La Porte. Duquinha, aquele viadão grande, quase dois metros, se apaixonou pelo portuguesinho e os amigos do rapaz cantavam, como se fosse num coro de igreja (como era mesmo o nome do português? Marinho? Martinho?):
Martinho beijou Duquinha
Martinho beijou Duquinha
Bem no meio da boquinha
“Que tempo bom, não?” Os olhos d’A Velha Chama brilharam.
“Aquele tempo era uma merda!”, disse A Negra Solidão. “A gente era puta escrota no baixo meretrício do Recife. Peguei e passei pros clientes blenorragia, cancro mole, cancro duro e depois também peguei Aids… Não sei se passei. Devo ter… E com tu também aconteceu a mesma coisa, Velha Chama. Tempo bom é hoje: a gente devia estar jogada no lixo e algum anjo resolveu pagar o hospital mais caro do Recife. Me disseram que o dinheiro chega todo mês no mesmo dia que a nossa conta fecha. Quem será, hem?”
“Hermes La Porte não é. Nunca mais soube dele…”, disse A Velha Chama. “Também não tinha por que.”
“Tinha gente apaixonada por tu e por mim”, respondeu A Negra Solidão. “Mas não sei de ninguém que enriqueceu a ponto de sustentar duas putas safadas morrendo num lugar caro…”
“Pera aí, amiga, eu não sou puta safada, não”, reagiu A Velha Chama.
“E o que a gente é?”, perguntou A Negra Solidão.
“Meninas, está na hora de voltar”, interrompeu Péricles. “Vocês já recordaram o passado, já viram os prédios, se divertiram… Doutor Silvino só me deu duas horas…”
“E não era melhor a gente virar a noite aqui, encher a cara e morrer já amanhã?”, perguntou A Negra Solidão.
“Para com isso!”, disse A Velha Chama. “Vamos ficar até a última hora que Deus quiser. Só te peço uma coisa, menino Péricles: não deixe de tentar descobrir quem paga nossa conta…”
“Tá bom, tá bom, mocinhas”, disse o rapaz. “Agora entrem no carro e vamos voltar. Hoje tem capítulo bom daquela novela…”
“Aquela novela é só putaria!”, falou alto A Negra Solidão. “Tão acabando com as putas. Homem nenhum precisa mais da gente, vai dormir na casa da namorada direto!”
“Calma, mulher, calma”, pediu A Velha Chama. “Se não fosse tu, quem é que ia suportar a negra solidão?”
O enfermeiro e a velhinha de minissaia olharam para a senhora brancosa, esquálida, com um sorriso irônico no rosto, e preferiram não falar mais nada.
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