Já fazia uma semana que Nhá Sirvina não pisava na loja. “Alguma coisa errada tem”, pensou seu Ferreira. Outra que não aparecia era dona Rosa Machado, mas esta só há uns três dias.
O português, apesar da aparência largada, barba por fazer, camiseta regata, e de soltar uns palavrões que, de vez em quando, deixavam as pessoas arrepiadas, era muito cioso das suas conquistas comerciais. E aquelas duas mulheres, entradas em anos (Nhá Sirvina já passara dos setenta), visitavam todos os dias, com rigor religioso, a lojinha de tecidos. Compravam, no máximo, três peças por semana. Um zíper hoje, uns botões amanhã, e entretelas, agulhas, linha. Coisinhas. Mas compravam.
Seu Ferreira estava convencido de que dona Rosa Machado guardava ilusões românticas a seu respeito, apesar de comportar-se como uma dama, sempre; já o problema de Nhá Sirvina era de solidão mesmo: largada no mundo, morando com o filho único, Lulão, que jamais aparecia em casa, ela precisava conversar com alguém. Escolhera o português.
“O que está errado na porra desta loja?”, perguntou seu Ferreira para si mesmo, em voz alta, assustando umas clientes que olhavam peças de algodão cru. “Será que elas não vêm por causa dos assaltos?”
Imaginou, por um momento, que o noticiário da televisão sobre os perigos da zona portuária, onde se estabelecera, estaria afastando a clientela. “Mas, grandes merdas”, dizia-se sempre em voz alta. “Os bairros ricos são os mais perigosos, aqui só tem pé de chinelo, uns coitados que roubam pra beber cachaça… Será que tem alguma coisa a ver com Xibiu?”
Lá estava Xibiu, olhando para ele com um “amor desesperado que me faz chorar”, como o próprio seu Ferreira definia o afeto que o adolescente, portador da Síndrome de Down, lhe dedicava. Xibiu estaria completando, agora, uns quinze anos. Seu Ferreira até evitava encará-lo por mais tempo, pois o rapaz soltava um urro assustador, de amor puro, levantava-se desengonçado (estava engordando demais) e corria até o português para abraçá-lo e cobri-lo de beijos.
“Ô, pare com isso, maluco, pare, pare…”
Seu Ferreira dizia “pare, pare”, mas, no fundo, não podia passar sem aquele carinho. Nunca tivera irmãos, namoradas, amantes. Servia-se das prostitutas ali de perto, uma de cada vez para não “pegar costume”. Dona Adélia, sua querida mãe e até então a única afeição da vida, morrera em Trás-os-Montes aguardando a passagem para viajar ao Brasil. Mas isso já fazia uns vinte anos. O segundo afeto do português era o Xibiu.
“Xibiu, você fez alguma coisa com dona Rosa Machado e com Nhá Sirvina?”
O garoto balançou alegre e violentamente a cabeça, de um lado para o outro, enquanto emitia seus impressionantes ruídos guturais.
“Entende tudo, o puto”, pensou seu Ferreira, sem deixar de sentir uma ternura definitiva pelo garoto. Xibiu surgira na sua vida há treze anos, quando uma mulher jovem e bem-vestida apareceu na lojinha. Trazia uma criança num saco às costas, o que não era muito comum por ali. De relance, porque atendia a outros clientes, seu Ferreira pensou tratar-se de uma criança japonesa. “Pai japonês, ou chinês”, pensou consigo. De repente não viu mais a mulher e, quando foi fechar a loja para almoçar (era o único comerciante que ainda fazia isso na rua), descobriu, numa pilha de tecidos desfraldados, que haviam sido arrumados como um berço, a estranha criança, dormindo. Teve certeza, depois, que lhe haviam dado alguma droga para que não fizesse barulho.
“Mas que filha duma puta!”, foi sua primeira reação. Correu para a rua atrás da mãe desalmada, mas nem sinal. Preocupado, logo voltou à loja vazia, e o garoto ainda dormia.
Desconsolado, mostrou o troféu para seu Golinho, do bar ao lado, e dona Aírdes, do brechó da esquina. Seu Golinho não teve reação, já estava tão calibrado àquela hora do dia que confundiu o garoto com um delirium tremens inédito.
“Que agonia!”, foi seu único comentário.
Já dona Aírdes encantou-se.
“Tão engraçadinho”, ela disse, sempre de coração mole. “Dá pra mim, seu Ferreira?” E ele, cuja reação natural seria livrar-se do problema o mais rápido possível, surpreendeu-se com a própria resposta: “Não, não. Já que veio, agora é meu”.
Recebeu, depois, todos os conselhos para procurar a polícia, o Juizado de Menores, as associações que cuidam de crianças com Síndrome de Down, mas negou-se, com firmeza. “Se veio é porque Deus mandou; se mandou, Ele sabe o que faz.”
“Mas você é sozinho, não tem nem mulher”, dizia-lhe o pessoal da rua. “E se você morrer? ”
“Bem, se eu morrer estarei fudido, mas o maluquinho vai ficar fudido e meio e aí alguém dará um jeito…”
Assim, a criança foi criada sem nome e sem documentos. O único cuidado que seu Ferreira tomou foi o de procurar Augusto Preto, o policial que dava proteção ao comércio da rua. Preto lhe garantiu: se ele chegasse à delegacia com a criança, iriam levá-la na hora para uma casa de caridade qualquer. “Ah, esta não, Augusto. Deus não iria me perdoar. Se Ele mandou…”, repetia seu Ferreira, com sua lógica inamovível. “Vai levando, vai levando…”, desconversou Augusto Preto, especialista na arte de fingir que não via.
Desde os cinco anos o garoto olhava para as pessoas com aquele “amor de fazer chorar”, mas com seu Ferreira era diferente. Além do olhar profundo, melado, ele agitava braços, pernas, o corpo todo ao ver o português. Um fenômeno de afeição. Seu Ferreira não aguentava. Mas, agora, ele sentia que o filho adotivo aprontara alguma.
“Diz pra mim, Xibiu, que foi que você fez?”
Neste momento apareceu Lulão, que há muito tempo não via. Andava com raiva dele: como podia largar a própria mãe, às vezes por semanas, e sumir no mundo? Não é atitude de filho. E o português sempre o cobrava de uma forma rude:
“E aí tu somes, ô gajo, e sou eu que tenho de aguentar as baldas da tua mãe…”
“Ah, seu Ferreira, casa com ela…”
“Estás louco, patife? Pensas que tua mãe é uma misse?”
Lulão soltava gargalhadas. Era todo errado, mas bem-humorado e paciente. Muito, muito safado. Fora ele que dera o apelido de Xibiu ao garoto. Lulão não perdia uma chance de inventar alguma maldade. Somente anos depois da chegada do filho adotivo, seu Ferreira foi descobrir que xibiu era nada mais nada menos do que um dos muitos apelidos populares de vulva.
“Ó canalha”, irritou-se o português, “por que destes o nome de buceta ao meu menino?”
“Ele parece, seu Ferreira.”
“Mas como parece, canalha, se nem pelos tem no rosto…”
“É o jeito, a expressão…”
“Canalha!”
E lá estava Lulão, com seu sorriso cínico. Por que aparecera? Cumprimentou o rapaz e aproveitou para perguntar pela mãe dele.
“Não pisará mais aqui”, disse Lulão.
“Mas por quê? Que aconteceu?”
“Xibiu mostrou o pinto pra ela. Parece que tava meio doidão. Coitada, mãe não vê isso há mais de trinta anos. Ficou traumatizada.”
“Mas é só um menino, Lulão. E maluquinho.”
“Mas pelo jeito é uma grandeza.”
“Grandeza que nada. É um pinto qualquer. Você conhece caralho, não conhece?”
“Só o meu.”
“Que é isso, Lulão? Venha cá, vou mostrar pra você…”, disse o português dirigindo-se ao garoto, que continuava a expor sua eterna felicidade.
“Não, não, pode deixar, seu Ferreira. Quero ver não…”
“Não fala asneiras, pois.”
Então era isso. O garoto virando rapazinho e, sem noção de coisa alguma, mostrava o pinto às freguesas. O português ganhara um problemão. Não poderia tirá-lo da loja, prendê-lo em algum lugar. Não adiantaria dar-lhe uma surra, ele não iria entender. Arrumar uma prostituta para aliviá-lo, nem pensar. Nesta idade, recordou, tesão não tem fim.
Ou seja: o garoto continuaria a mostrar o pinto.
“Estou falido”, decretou o português, “se não der um jeito nisso, o mais rápido possível.”
Naquela noite passou horas diante de Xibiu tentando adverti-lo, inclusive com gestos dramáticos: se mostrasse o pinto às mulheres, elas poderiam reagir, cortando-o com uma tesoura. Mas o garoto não deu mostras de ter compreendido. Acabou dormindo, como um anjo, nos braços do pai.
“Por que Deus, que lhe tirou o juízo, não lhe tirou também o tesão?”, indagou-se seu Ferreira. “Uma coisa deveria depender da outra…” Depois, concluiu que Deus sabe o que faz, pediu perdão a Ele na oração noturna. Quando acordou, no dia seguinte, a solução do problema veio junto. Deus ouvira suas preces. E a solução era simples.
Seu Ferreira levou dois dias ensaiando o que dizer às duas mulheres escandalizadas. Primeiro iria procurar Nhá Sirvina, o caso mais complicado; depois, dona Rosa Machado. Pôs seu paletó branco de dez anos atrás, vestiu Xibiu com sua melhor roupa, que já estava apertadíssima, e lá foram os dois, rua afora, recebendo cumprimentos e sorrisos. Eram extremamente populares no bairro.
Foi a própria Nhá Sirvina que atendeu, e não parecia zangada ao vê-los.
“Seu Ferreira, que milagre, esta é a primeira visita que o senhor me faz!” – disse, abrindo a porta e convidando os dois a se acomodar na mínima sala de estar do sobradinho.
Apesar dos protestos do português (“já comi, estou inchado”), Nhá Sirvina serviu cafezinho, ofereceu bolos e doces. Xibiu aceitou por ele e pelo pai adotivo. Comia com volúpia.
“O assunto é de grande constrangimento, Nhá Sirvina”, iniciou o português. “Mas sou obrigado a lhe falar…”
“Que aconteceu, seu Ferreira?”
“Bem, fiquei sabendo que o Xibiu aqui mostrou o pinto para a senhora lá na loja.”
Ele não esqueceria aquele silêncio pelo resto da vida. Nhá Sirvina ficou pálida, primeiro; depois se levantou, sem rumo, arrumou a mesa, que não carecia de arrumação. Disse, com a voz trêmula:
“Ninguém me mostrou nada, seu Ferreira…”
“O maluquinho não lhe mostrou o pinto, Nhá Sirvina?”
“Nada, nada, nada, seu Ferreira”, a voz já havia se transformado, elevara-se alguns decibéis.
“Mas que canalha!”
“Quem, seu Ferreira? O menino não fez nada…”
“Não, não é o Xibiu, não. É quem inventou essa história…”
“Ah, não ligue, seu Ferreira. O senhor tem certeza de que não aceita compota de goiaba?”
“Sabe, até vou aceitar. Me saiu um peso da cabeça…”
E ali ficou, quase uma hora, a loja fechada, ouvindo a mulher discorrer sobre a gripe terrível que se abatera sobre o bairro e que derrubara muita gente, ela e dona Rosa Machado inclusive. Seu Ferreira olhava, de vez em quando, para Xibiu, pensando que o garoto era mesmo o seu único e definitivo amor, e o rapazinho lhe retribuía em dobro, às vezes ronronando, às vezes soltando uns gritos arrepiantes, enquanto devorava o último naco de goiaba da compoteira.
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