terça-feira, 17 de julho de 2012

PATATIVA DO ASSARÉ...UM CORDEL...


VICENÇA  E SOFIA OU O CASTIGO DE MAMÃE – Patativa do Assaré
Vô dá uma prova franca,
falando pra seu doto:
gente preta e gente branca,
tudo é de Nosso Sinhô.
Mas tem branco inconsciente,
que querendo sê decente
diz que o preto faz e nega,
que o preto tem toda faia;
não vê os rabo de paia
que muitos branco carrega.
Pra sabê que o preto tem
capacidade e valia,
não vou mexê com ninguém
provo é na minha famia.
Eu sou branco, quase louro
mas no primeiro namoro,
com a santa proteção
da Divina Providença
eu casei com a Vicença
preta de cô de carvão.
Ela não tinha beleza,
não vô menti, nem negá,
mas tinha delicadeza
e sabia trabaiá.
Venta chata, beiço grosso,
e muito curto o pescoço,
disto tudo eu dava fé.
A feiúra eu não escondo,
os óio grande e redondo
que nem os do caboré.
Mas Deus, com sua ciença
em tudo faz as mistura;
a bondade da Vicença
tirava a sua feiúra.
E o amô não é brinquedo,
amô é grande segredo
que nem o sábio revela.
Quando a Vicença falava
parece que Deus mandava
que eu me casasse com ela.
Houve um baruio do diacho,
papai e mamãe não queria.
Foram arriba e foram abaixo
mode vê se eu desistia,
um falava, outro falava,
porém do jeito que eu tava
eu não podia deixá,
eu tava que nem ureca
que depois que prega e seca,
não tem quem possa arrancá.
Mamãe dizia: – Romeu,
veja a grande diferença,
veja a cô que Deus lhe deu
e o pretume da Vicença.
Tenha vergonha, se ajeite,
aquela pipa de azeite
não serve de companhia.
Isto é papel do capeta,
você com aquela preta
desgraça nossa famia.
Isso muito me aborrece.
Que futuro você acha
nessa preta que parece
um tubo sujo de graxa?
Lhe dou um conselho agora:
deixe tudo e vá se embora 
ganha dinheiro no sul.
Venda o meu burro e o cavalo,
vá se embora pra São Paulo,
acabe com esse angu.
Mude a sua opinião,
senão você fica à-toa.
Eu não lhe boto benção
e o seu pai lhe amaldiçoa.
Este infeliz casamento
só vai lhe dá sofrimento.
Isto eu digo e em Deus confio,
você vai se arrependê,
depois, mais tarde vai tê
vergonha até de seus fio.
Fio com mãe não discute,
mas porém com esta briga,
eu disse: – Mamãe, escute,
é preciso que eu lhe diga,
não fale da fia aleia.
A Vicença é preta e feia,
não vou lhe dizê que não.
Disto tudo eu já dei fé,
mas eu não quero muié
pra botá na exposição.
Mamãe, eu quero muié
é pra mode me ajudá,
fazê comida e café
e a minha vida zelá.
E aquela é uma pessoa
que pra mim tá muito boa,
o que é que a senhora pensa?
Lhe digo sem brincadeira,
mamãe é trabalhadeira,
mas não vai com a Vicença.
Dotô, mamãe desta vez
de raiva ficou cinzenta.
Fungou igual uma rês
quando cai água nas venta.
Com raiva saiu de perto,
e eu achei que eu tava certo
defendendo meu amô,
pois tenho na minha mente
que o nêgo também é gente,
pertence a Nosso Sinhô.
E eu disse: – Eu vou é botá
meu casamento pra riba.
Tenho idade de casá,
não vejo quem me proíba.
Saí como quem não foge,
fui na casa de seu Jorge.
Cheguei lá, pedi licença
e tratei do meu noivado;
ficou todo admirado
do meu amô por Vicença.
E eu disse: – Mamãe e papai
o casamento não qué,
mas porém a coisa vai
mesmo havendo rapapé.
Seu Jorge, eu quero é depressa,
já dei a minha promessa,
e eu prometendo não nego.
Mesmo eu conheço o direito,
casamento deste jeito
se faz é trás e zás, nó cego.
Seu Jorge com muito gosto
fez as obrigação dele,
pois era forte e disposto,
que eu nunca vi como aquele.
Depois que fez os preparo,
convidô seu Januário,
um bom tocadô que eu acho,
que é com seu dom soberano,
o maió pernambucano
pra tocá nos oito baixo.
Com a pressa que nós tinha,
seu Jorge tomou a frente
como quem caça meizinha
quando tá com dô de dente.
E depressa, sem demora,
veio o dia e veio a hora
do mais feliz casamento.
E perto do sol se pô,
seu Januário chegô
montado no seu jumento.
Eita, festona animada!
Mió não podia sê.
O tamanho da latada
não é bom nem se dizê.
Sogra, sogro e seus parente
brincava tudo contente,
cada qual o mais feliz.
Porém, ninguém puxou fogo,
nem houve banca de jogo
porque seu Jorge não quis.
Era noite de luá
e a lua, o mundo briando
dentro das lei naturá,
lá pelo espaço, vagando,
pura como a conciença
da minha noiva Vicença,
o meu amparo e meu bem.
Parece até que se ria
e pras estrela dizia:
- Romeu, tá de parabém.
Seu Januário sem medo
tomou um pequeno gole
e foi molengando os dedo
no teclado do seu fole.
Os véio, os moço e as criança
caíram dentro da dança
com uma alegria imensa.
E eu com a noiva dançando,
já ia me acostumando
com o suó de Vicença.
Seu dotô, eu sei que alguém
não me acredita e me xinga,
mas do suó do meu bem
eu nunca senti catinga.
Esta vaidade tola
da branca contra a crioula,
a maió besteira é.
Com tudo a gente se arruma,
Qualquer home se acostuma
Com o cheiro das muié.
Seu moço, não ache ruim,
pois eu vou continuar.
Uma história boa assim
só se conta devagar.
Já disse com paciença
que eu casei com a Vicença,
é este o primeiro trecho,
o mais mió deste mundo.
Agora eu conto o segundo
pro sinhô vê o desfecho.
Nem com a força do vento
a luz de Deus não se apaga.
E quando chega o momento,
aquele que deve, paga.
Muito ignorante foi
mamãe, que Deus lhe perdoe,
e papai, o seu marido.
Nenhum falava com eu,
pra eles dois, o Romeu
tinha desaparecido.
Mas nosso Deus verdadeiro
com a providença sua,
escreve certo e linheiro
até num arco de pua.
Lá um dia a casa cai,
com mamãe e com papai
um desastre aconteceu.
Escute bem o que digo
e veja como o castigo
na casa deles bateu.
O meu irmão, o José,
que ainda tava solteiro,
lesado, besta e paié
que nem peru no poleiro,
se largou do seus cuidado
e por mamãe atiçado,
entendeu de se casá.
E casou com a Sofia,
a mais bonita que havia
praquelas banda de lá.
A Sofia era alinhada
branca do cabelo louro,
disciplinada e formada
nas escola de namoro.
O que tinha de fromosa
tinha também de manhosa.
Dos trabaio de cozinha
ela não sabia nada,
e pra sê bem adulada
tomou mamãe por madrinha.
Foi a maió novidade
o casório de José.
Pra lhe dizê a verdade
sortaro até buscapé,
foguete, traque e chuvinha.
Com o prazê que eles tinha,
foi comida pra sobrá.
Houve almoço, janta e ceia,
mataro até minha oveia
que eu tinha deixado lá.
Foi grande o contentamento
como igual eu nunca vi.
E depois do casamento,
era Sofia prali
e Sofia pracolá.
A mamãe, que pra cantá
nunca teve intiligença,
sorfejava toda hora
só porque tinha uma nora
diferente da Vicença.
Mas pra fazê trapaiada
Sofia era cobra mansa.
Inventou umas andada
por aquelas vizinhança.
E o meu irmão sem receio
não ligava estes passeio
confiando na muié.
Mas porém a descarada
tava naquelas andada
botando chifre em José.
A coisa inda tava assim
na base da confusão:
alguns dizia que sim,
outros dizia que não.
Mas foi pegada em flagrante
lá dentro duma vazante
nuns escondidos que tinha.
E quer sabê quem pegô?
Não foi eu, nem seu dotô,
foi mamãe, sua madrinha.
A mamãe toda tremendo
naquele triste segundo,
como se tivesse vendo
uma coisa do outro mundo,
voltou pra casa chorando
lamentando e cramunhando
o caso que aconteceu.
E a Sofia foi embora,
largou-se de mundo afora
nunca mais apareceu.
Por causa daquele embrulho,
minha mamãe acabou
com a soberba e o orgulho
que sempre a acompanhou.
Mandô pedi com urgença
que eu fosse mais a Vicença
mode me botá benção.
Pois ela e o seu marido,
de tudo que tinha havido
queriam pedir perdão.
Com o que fez a Sofia
mamãe virou gente boa.
E dizia: – Minha fia,
Vicença, tu me perdoa?
Como o pobre penitente
que dentro da sua mente
um fardo de culpa leva,
mamãe na frente da nora
parecia a branca aurora
pedindo perdão à treva.
Se acabou a desavença,
se acabou a grande briga.
Pra ela, hoje a Vicença
é nora, filha e amiga.
Hoje o seu prazer completo
é pentear seus três netos
do cabelo arrupiado.
Cabelo mesmo de bucha
mas mamãe puxa e repuxa
até que fica estirado.
E é por isso que onde eu chego,
no lugar onde eu tivé,
ninguém fala mal de nêgo
que seja home ou muié;
o preto tendo respeito
goza de justo direito
de ser cidadão de bem.
A Vicença é toda minha
e eu não dou minha pretinha
por branca de seu ninguém.
Se de qualquer parte eu venho,
entro na minha morada
e aquilo que eu quero, tenho,
tudo na hora marcada
da sala até a cozinha;
e a Vicença é toda minha
e eu também sou dela só.
Eu sou home, ela é muié
e o que eu quero ela qué,
pra que coisa mais mió?
Seu dotô, muito obrigado
por sua grande atenção,
escutando este passado
que serve até de lição.
Neste mundo de vaidade,
critério, honra e bondade
não têm nada com a cô.
Eu morro falando franco:
tanto o preto como o branco
pertence a Nosso Sinhô.

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