sábado, 2 de julho de 2011
UM GRANDE VELÓRIO...
CÍCERO CAVALCANTI
Os preparativos do velório já estavam bem adiantados. A funerária com seus homens de preto já havia instalado a mesa no centro da sala, as coroas de flores, os castiçais e um grande crucifixo todo dourado, na parede que fica bem atrás do caixão. A mesa estava forrada com um tecido rendado em figurações de anjos e cenas do paraíso. Apenas as velas ainda não estavam acesas porque o defunto ainda não havia chegado. Recebia sua última maquiagem no plano dos vivos.
A suntuosidade era impressionante. Por baixo da mesa onde seria posto o esquife, via-se um tapete vermelho que percorria todo o salão nobre da mansão dos Dias Aguiar - família que Nenzinho era patrono, chefe, comandante, ditador e coronel. Era tanto luxo, que na pequena cidade de Rosário, com cerca de vinte mil habitantes, o mundo parecia ter parado em plena quarta-feira. O prefeito decretou feriado municipal , o comércio inteirinho fechou suas portas e não havia ninguém, ninguém mesmo, nenhuma vivalma da cidade, que não estava em pleno preparativo para aproveitar a boca livre do evento.
E tudo isso para participar do enterro do maior crápula que toda a região do estado já teve noticia. Um safado cachaceiro. Um putanheiro da pior espécie que passou sua vida inteira rodeado de quengas, mulheres safadas, proxenetas, rufiões e alcoviteiros de todas as laias.
Desonesto não. Nenzinho Dias Aguiar jamais negou o seu desregramento. Era boêmio assumidíssimo e nem pra casar cuspiu no prato da safadeza, onde tanto comia. Dona Neuzinha sua esposa, apaixonada que estava por aquela figuraça de homem bonito, bem falante, culto e extremadamente caridoso, antes mesmo do casório levou logo no pé das oiça: “ Gosto de tu. Quero casar com tu. Mas nem pense em mudar a minha vida. Um rei como eu não pode ser homem de uma mulher só, e você bem conhece a minha fama. Mas tem uma coisa que eu prometo de joelho se você quiser: você será a única rainha deste castelo, a preferida, a consorte, a esposa e a dona de tudo”.
A resposta foi a mais doce possível: “ Prefiro repartir você com todas as mulheres do mundo, do que viver sem a sua presença na minha vida”.
Pronto. Gente honesta é assim. Nenzinho, além do aceite da futura cara-metade, ainda acabara de criar a figura inusitada da pré-corna. A chifruda com dois belos guampos na cabeça sem ainda nem ter sido traída. E mais vos digo: mesmo traída, em todos os dias do seu feliz casamento, pinto pra ela não faltava. Aliás, contam as más línguas, até sobrava. “ Não existe mulher no mundo que aguente à quantidade de pirocada desse feladaputa” dizia ela feliz e orgulhosa.“ Graças ao bom Deus, minhas sócias da rua me ajudam” completava pra quem quisesse ouvir.
Pois Nenzinho morrera. A idade avançada de 78 anos não aguentara a putanhice, a cachaçada, a comilança e toda a safadeza desse sem vergonha. Morreu de morte fulminante - em meio a um furdunço com três raparigas - no abatedouro, nome que carinhosamente dava à chácara onde realizava seus bacanais durante a semana. E morreu sem ser chifrudo. Neuzinha lhe fora fiel a vida inteira.
Quatro da tarde e o salão do funeral já se encontrava lotado de gente. O corpo chegou, e o defunto estava uma lindeza de bonito. Todo penteado, com um terno branco de linho puro e uma gravata borboleta vermelha, como sempre foi do seu gosto. Nenzinho ainda trazia no bolso um lenço do mesmo tecido da gravata e um sapato de duas cores, como era da moda.
Até morto o cabra não escondia sua semvergonheira. Seu rosto exibia uma certa felicidade indecente, como se ainda estivesse no bembom com as três ultimas quengas, lá na chácara.
Nem bem o caixão foi colocado em cima da mesa e os puxa-sacos começaram a se aproximar. Dona Neusinha ficou o tempo todinho com a cabeça em cima do peito do falecido e chorava copiosamente. De Nenzinho só tivera coisas boas nesta vida, além do fato de se sentir a mulher mais desejada deste mundo. O véi Nenzinho, mesmo em plena velhice, ainda era um garanhão de fogoso.
Tudo foi bem até ali pela casa da meia noite. Só se ouvia o som baixinho do chororô da viúva que as vezes se alterava e destampava um berreiro, pra depois ir se acalmando novamente. No mais era só o tititi incompreensível do conversê dos veloriantes , que se fartavam com quitutes, boas talagadas de pinga e licores caseiros, por sinal muito bem preparados pela dona da casa.
Quando o relógio da sala soou a exatidão da meia noite, Olegário entra no recinto. Ele e uma tuia de pés inchados, todos eles parceiros e confrades das imensas margaças e catrevagens, sempre pagas dadivosamente pelo bolso do defunto.
Nesse momento o caixão se encontrava sozinho. Dona Neuzinha acabou atendendo o conselho do médico da família, e após tomar um sedativo, recolheu-se ao seus aposentos para descansar um pouco, afinal a noite ia ser longa e exaustiva.
Olegário tirou proveito da solidão do defunto para se postar ao lado do caixão. Antes fez um sinal com a mão para o magote de cachaceiros que o acompanhava, informando que desejava ficar sozinho com o morto. Foi obedecido.
Já ao lado do esquife, e depois de alguns minutos de silêncio respeitoso, começou a balbuciar palavras inaudíveis, todas acompanhadas de carrancas estranhas, que deixavam à mostra uma grande mágoa que trazia na alma.
Aos poucos o nervosismo de Olegário foi aumentando. O nervosismo e o volume de suas reclamações. E foi aumentando e aumentando até que, já esquecido de que se tratava de um velório, suas lamúrias já podiam ser ouvidas por todos. E o que se ouviu era um monólogo estranho que não dava mostras reais do que se tratava.
- …Porque Nenzinho? Porque? …Logo comigo Nenzinho?
Por vezes parava, pensava e retornava cada vez mais emocionado.
- …logo eu Nenzinho? Esqueceu de quantas vezes eu defendi você? E que eu sempre considerei a vossa pessoa como o irmão que eu nunca tive?
E o cabra foi se esquentando. Agora já praticamente gritava no meio do salão.
- Isso Nenzinho é de uma canalhice sem tamanho! Isso é coisa de animal Nenzinho! Coisa de gente desqualificada Nenzinho!
E se esquentando.
- Não bastasse a dor física Nenzinho, ainda ficou a ferida moral que dói bem mais do que se fosse uma punhalada! Você é um canalha Nenzinho! Um sujeito desprezível Nenzinho! O pior de todos os vermes!
Olegário agora já estava completamente fora de si. Tremia de nervos. E berrava em total descontrole.
- Cachorro! Safado! Cão dos infernos!
Após gritar um imenso “FILHOOO DA PUTAAAAA”, agarrou o defunto pelo colarinho, levantou e começou a dar tabefes e tabefes na cara do falecido.
Imediatamente Neneco , - um dos filhos do falecido – após gritar um patético “…acode o pai gente!” aproximou-se de Olegário pra tomar satisfações.
- Que história é essa Olegário? Deu agora pra bater em defunto é?
Olegário, mais esbaforido do que nunca, responde de pronto.
- Cala a boca moleque! Não se meta nisso! Moleque e Corno! Pior ainda: corno do própria pai! Seu pai bem que andou se lambuzando na xereca dessa vagabunda que você casou com ela!
Neneco subiu nas tamancas. Ficou tão indignado que nem pensou duas vezes antes de meter um murro na cara de Nenzinho. O pobre coitado, bêbado que só, saiu se segurando como pode antes de se estatelar no chão.
A turma de margaceiro, ao ver seu líder apanhando resolve tomar as dores e pegar Neneco pra aplicar-lhe um corretivo.
Vendo isso os homens da família e os amigos de Neneco também se levantaram e se meteram no desmantelo.
O pau comeu feio no velório de Nenzinho. Voou cotoco de vela, castiçal, cadeira e tudo o que estava ao alcance das mãos. Até o crucifixo da parede foi parar no chão, pisado e amassado pelos pés de quem participava do quebra pau.
Ainda houve coisa pior.
A mesa do caixão de Nenzinho tinha os pés retráteis. No toma lá dá cá da emboança alguém esbarra neles, fazendo-os subir pra parte inferior da mesa. Com isso a mesa se inclina totalmente e o caixão escorrega e fica em pé no meio do salão. A cena era mórbida. O caixão, em pé, balançava pra um lado e o defunto, também em pé pra outro.
Nesse momento a beata Zefinha Das Dores grita a todo pulmão, “ Valei-me Nosso Sinhô Jisuis Cristo. O defunto Reviveu-se! Olha lá gente, Nenzinho tá vivinho da silva!”.
Não ficou um no salão. A cabroeira toda escafedeu-se. E do jeito que foi possível. Teve gente pisada na correria.
Só bem mais tarde é que tudo voltaria ao normal. A funerária tomou as providências, ajeitou as coisas e pelas quatro da manhã tudo estava nos conformes.
Nenzinho foi enterrado ao som da banda municipal que tocou sentidamente a marcha fúnebre, um dos seus pedidos enquanto vivo.
O certo é que ninguém ficou sabendo a razão da indignação de Olegário. O causo nunca foi esclarecido.
Pela vergonha, o cabra mudou-se de cidade e levou o segredo consigo.
O que se sabe é que no meio da praça principal um gaiato mandara colocar uma imensa faixa, com os seguintes dizeres e em letras imensas :
“ O QUE SERÁ QUE NENZINHO FÊZ?”
Quem souber, por favor, ajude o pessoal de Rosário a resolver o mistério.
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