segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

ULTIMATUM...ÁLVARO DE CAMPOS...

"Um dia,
lá para o fim do futuro,
alguém escreverá sobre mim um poema,
e talvez só então eu comece a reinar no meu Reino."


Ultimatum


Mandado de despejo aos mandarins da Europa! Fora.
Fora tu, Anatole-France, Epicuro de farmacopeia-homeopática, ténia-Jaurès do
Ancien-Régime, salada de Renan-Flaubert em louça do século dezassete,
falsificada!
Fora tu, Maurice-Barrès, feminista da Acção, Chateaubriand de paredes nuas,
alcoviteiro de palco da pátria de cartaz, bolor da Lorena, algibebe dos mortos dos outros, vestindo do seu comércio!
Fora tu, Bourget das almas, lamparineiro das partículas alheias, psicólogo de tampa de brasão, reles snob plebeu, sublinhando a régua de lascas os mandamentos da lei da Igreja!
Fora tu, mercadoria Kipling, homem-prático do verso, imperialista das sucatas, épico para Majuba e Colenso, Empire-Day do calão das fardas, tramp-steamer da baixa imortalidade!
Fora! Fora!
Fora tu, George-Bernard-Shaw, vegetariano do paradoxo, charlatão da sinceridade,
tumor frio do ibsenismo, arranjista da intelectualidade inesperada, Kilkenny-Cat de
ti próprio, Irish-Melody calvinista com letra da Origem-das-Espécies!
Fora tu, H. G. Wells, ideativo de gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da
Complexidade!
Fora tu, G. K. Chesterton, cristianismo para uso de prestidigitadores, barril de
cerveja ao pé do altar, adiposidade da dialéctica cockney com o horror ao sabão
influindo na limpeza dos raciocínios!
Fora tu, Yeats da céltica-bruma à roda de poste sem indicações, saco de podres
que veio à praia do naufrágio do simbolismo inglês!
Fora! Fora!
Fora tu, Rapagnetta-Annunzio, banalidade em caracteres gregos, «D. Juan em
Pathmos» (solo de trombone)!
E tu, Maeterlinck, fogão do Mistério apagado!
E tu Loti, sopa salgada fria!
E finalmente tu, Rostand-tand-tand-tand-tand-tand-tand-tand!
Fora! Fora! Fora!
E se houver outros que faltem, procurem-nos por aí pra um canto!
Tirem isso tudo da minha frente!
Fora com isso tudo! Fora!
Ai! que fazes tu na celebridade, Guilherme-Segundo da Alemanha, canhoto maneta
do braço esquerdo, Bismarck sem tampa a estorvar o lume?!
Quem és tu, tu da juba socialista, David-Lloyd-George, bobo de barrete frígio feito de Union Jacks?!
E tu, Venizelos, fatia de Péricles com manteiga, caída no chão de manteiga para
baixo?
E tu, qualquer outro, todos os outros, açorda Briand-Dato. Boselli da incompetência
ante os factos todos os estadistas pão-de-guerra que datam de muito antes da
guerra! Todos! todos! todos! Lixo, cisco, choldra provinciana, safardanagem
intelectual!
E todos os chefes de estado, incompetentes ao léu, barris de lixo virados para baixo à porta da Insuficiência da Época!
Tirem isso tudo da minha frente!
Arranjem feixes de palha e ponham-nos a fingir gente que seja outra!
Tudo daqui para fora! Tudo daqui para fora!
Ultimatum a eles todos, e a todos os outros que sejam como eles todos!
Senão querem sair, fiquem e lavem-se.

Falência geral de tudo por causa de todos!
Falência geral de todos por causa de tudo!
Falência dos povos e dos destinos — falência total!
Desfile das nações para o meu Desprezo!
Tu, ambição italiana, cão de colo chamado César!
Tu, «esforço francês», galo depenado com a pele pintada de penas! (Não lhe dêem muita corda senão parte-se!)
Tu, organização britânica, com Kitchener no fundo do mar mesmo desde o princípio da guerra!
(It ’s a long, long way to Tipperary and a jolly sight longer way to Berlin!)
Tu, cultura alemã, Esparta podre com azeite de cristismo e vinagre de
nietzschização, colmeia de lata, transbordamento imperialóide de servilismo engatado!
Tu, Áustria-súbdita, mistura de sub-raças, batente de porta tipo K!
Tu, Von Bélgica, heróica à força, limpa a mão à parede que foste!
Tu, escravatura russa, Europa de malaios, libertação de mola desoprimida porque
se partiu!
Tu, «imperialismo» espanhol, salero em política, com toureiros de sambenito nas
almas ao voltar da esquina e qualidades guerreiras enterradas em Marrocos!
Tu, Estados Unidos da América, síntese-bastardia da baixa-Europa, alho da açorda
transatlântica nasal do modernismo inestético!
E tu, Portugal-centavos, resto da Monarquia a apodrecer República, extrema-unção-enxovalho da Desgraça, colaboração artificial na guerra com vergonhas naturais em África!
E tu, Brasil, «república irmã», blague de Pedro-Álvares-Cabral, que nem te queria descobrir!
Ponham-me um pano por cima de tudo isso!
Fechem-me isso à chave e deitem a chave fora!
Onde estão os antigos, as forças, os homens, os guias, os guardas?
Vão aos cemitérios, que hoje são só nomes nas lápides!
Agora a filosofia é o ter morrido Fouillée!
Agora a arte é o ter ficado Rodin!
Agora a literatura é Barrès significar!
Agora a crítica é haver bestas que não chamam besta ao Bourget!
Agora a política é a degeneração gordurosa da organização da incompetência!
Agora a religião é o catolicismo militante dos taberneiros da fé, o entusiasmo
cozinha-francesa dos Maurras de razão-descascada, é a espectaculite dos
pragmatistas cristãos, dos intuicionistas católicos, dos ritualistas nirvânicos,
angariadores de anúncios para Deus!
Agora é a guerra, jogo do empurra do lado de cá e jogo de porta do lado de lá!
Sufoco de ter só isto à minha volta!
Deixem-me respirar!
Abram todas as janelas!
Abram mais janelas do que todas as janelas que há no mundo!




Revista “Portugal Futurista” , N.º 1 e único - pp. 30-34
Álvaro de Campos
Novembro de 1917

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