Por Jorge Furtado
O erro de Ambroise Paré
Em 23 de agosto de 1572, o rei da França, Carlos IX, estava com problemas. No dia anterior, um católico radical chamado Maurevert tentara matar o almirante Gaspard de Coligny, um dos líderes huguenotes, provocando reações violentas por toda Paris. A revolta protestante poderia crescer e ameaçar o trono, enquanto a nobreza católica exigia forte repressão do exército. Carlos, então com 22 anos, deveria tomar uma decisão rápida, o que significava, todos sabiam, perguntar para sua mãe o que fazer. Sua mãe, Catarina de Médici, era o poder de fato na França e Carlos foi até seus aposentos no palácio para aconselhar-se. Encontrou-a, como era freqüente, na companhia de seu médico, Ambroise Paré.
Ambroise Paré foi um grande médico. Ele descobriu que, ao contrário do que se pensava, os ferimentos de bala de chumbo não eram venenosos e o tratamento com óleo fervente, nada agradável ao paciente, era inútil. Passou a tratar os ferimentos com uma mistura de terebentina *, gema de ovo e óleo de rosas, um primitivo anti-séptico que salvou muitas vidas. Paré também criou vários tipos de próteses, foi precursor do implante dentário, criou instrumentos cirúrgicos. Em 1552 tornou-se médico da família real francesa. Ele era, ao que se sabe, um huguenote.
Catarina ordenou ao seu filho que tratasse os revoltosos sem piedade, mas manteve seu médico em segurança, no palácio. Na madrugada de 24 de agosto, dia de São Bartolomeu, o exército de Carlos IX iniciou o massacre que durou vários meses e matou milhares de huguenotes por toda a França. Os números estimados de mortos vão de 30 a 100 mil.
Paré sobreviveu ao massacre dos huguenotes, a Catarina de Médici e a Carlos IX, foi médico de seu sucessor no trono, Henrique III, e morreu em Paris, aos 80 anos. Ambroise Paré foi um dos grandes gênios da renascença - pioneiro na cirurgia para correção do lábio leporino, algumas de suas descobertas para conter a hemorragia de membros amputados são usadas até hoje - mas talvez sua maior contribuição ao progresso humano se deva não a um de seus acertos, mas a um de seus erros.
Como se sabe, a igreja católica só admitia o sexo, mesmo entre casados, para a procriação. Qualquer forma de prazer desnecessário para o dever de ter filhos era pecado. Os teólogos católicos seguiam a concepção de Aristóteles: a mulher é um vaso receptor da semente do homem, e ponto. A natureza, segundo a igreja católica, não precisava do orgasmo feminino. Cinco séculos depois, o médico grego-romano Cláudio Galeno discordou de Aristóteles: a mulher, para gerar filhos, também precisa emitir uma semente, não é apenas um vaso de terra fértil.
O debate entre os partidários de Aristóteles e Galeno quanto à necessidade da “emissão da semente” pela mulher durou mais de mil anos, prevalecendo a idéia - defendida por São Paulo, São Jerônimo, Santo Agostinho - de inutilidade do orgasmo feminino. Nos séculos XVI e XVII, vários médicos começam a contestar Aristóteles e a reviver Galeno, defendendo que a emissão da semente feminina é sim condição para que ela engravide e tenha filhos saudáveis. Ambroise Paré foi mais longe: afirmou somente haver concepção “quando ambas as sementes são emitidas ao mesmo tempo”. Segundo Paré, o orgasmo simultâneo seria fundamental para a concepção e portanto deveria, ao invés de ser considerado um pecado, ser incentivado pela igreja: bons cristãos devem gozar juntos.
A teoria de Paré e de outros defensores de Galeno venceu. Vários teólogos católicos passaram a afirmar que a mulher tinha o dever de gozar (e, alguns, de que ela cometia pecado ao não gozar), que o marido tinha o dever de prolongar o prazer da mulher até o orgasmo e, que se ele não acontecesse de forma natural, cabia a mulher – segundo a opinião de 14 dos 17 teólogos que participaram deste empolgante debate – “chegar ao orgasmo fazendo carícias ela própria”.
A diversão durou até o século XVIII, quando novas pesquisas e métodos científicos afirmaram não haver relação alguma entre a gravidez e o orgasmo feminino, descoberta que esfriou as camas católicas por mais de cem anos. O erro de Ambroise Paré pode ter sido diretamente responsável por três séculos de orgasmos femininos no ocidente cristão
Nos séculos XIX e XX a mulher passou a lutar por seu direito ao prazer (e ao voto, à educação, aos melhores salários, a presidir países e indicar a diretoria de Furnas, etc.) e o assunto saiu de moda, mas é curioso saber que as mais recentes pesquisas sobre reprodução afirmam que talvez Ambroise Paré e os galenistas não estivessem tão errados assim: o orgasmo feminino, com seus movimentos corporais e sua emissão de hormônios, pode sim ter papel importante na concepção. Talvez Paré tenha intuído ou descoberto que se tudo na natureza tem um sentido. Não seria, logo o prazer, inútil.
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