segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

DEPOIMENTO DE UMA EX...



Eu namorei o Jabor.

Pensei em milhões de outras formas de dar início a este texto, mas nenhuma me pareceu tão honesta e correta quanto essa. Porque, começando desse modo, deixo claro ao leitor que não se trata de um texto jornalístico, daqueles em que se esperam imparcialidade e objetividade. Eu não tenho o olhar distanciado. O leitor talvez possa imaginar que escrever sobre alguém que conhecemos é mais fácil do que escrever sobre um desconhecido. Mas isso está a anos-luz de ser verdade. Quanto maior a intimidade, maior a consciência das contradições de uma pessoa. Intimidade é como vista panorâmica da santíssima trindade do sujeito, onde se revelam o que ele é, o que pensa que é e o que gostaria de ser. O que do Jabor eu poderia revelar sem trair a intimidade compartilhada? Afinal, ele tem tanto direito quanto qualquer um de nós de proteger sua imagem. A diferença é que ele é uma figura pública. Aliás, para rebater qualquer acusação de que estou fazendo isso por razões obscuras, mostrei o texto a ele. Ele comentou algumas passagens.

Jabor: “Achei o texto palatável. Nada de mais que me incomode”
Entrevistá-lo é um deleite. Ele esbanja carisma, inteligência e articulação. Mas o que eu faço quando sei que está mentindo, omitindo ou encenando o papel que toda pessoa famosa encena na construção da própria imagem? Se escrever sobre alguém não é contar apenas aquilo que ele tem de lindo ou impecável, mas esmiuçar o que nele há de honesto e humano, eu teria de “filtrar” a entrevista. O grande dilema estava justamente no fato de que o poder de filtragem vinha de nossa convivência amorosa do passado, o que poderia me colocar numa situação extremamente delicada. Então eu decidi ir por camadas, como se o descascasse, percorrendo o Jabor da superfície ao miolo, de modo a explorá-lo do gritante ao indizível. Preocupada, claro, em preservar intacta a fronteira da discrição — como diz Zeca Baleiro, sou do tempo em que os amores eram elegantes.

Conhecemo-nos há meia década, numa noite fria de junho, ao redor de uma fogueira. Eu, vestida a caráter para a festa junina. Ele, de calça jeans, camisa branca e paletó de veludo marrom-claro. Estava muito alinhado. Eu o vi logo que atravessou o portão, a uns 20 metros de distância. Sua imponência era gritante, não apenas pelo 1,9 metro de altura, mas pelo porte robusto e pela postura ensaiadamente correta. Mas o que mais me comoveu é que aquele homem notoriamente conhecido transbordava insegurança e timidez. Andava como quem pede licença e se desculpa pela falta de traquejo, cambaleante, buscando com o olhar algum porto seguro. Estava visivelmente retraído e fora de ambiente, comparecendo heroicamente à festa em que seu filho (na ocasião com 6 anos) o esperava. No mesmo instante me enchi de afeição pela expressão desamparada e o olhei fixamente, oferecendo uma acolhida calorosa. Ele encontrou meu olhar e caminhou decidido em minha direção. Parecia que tínhamos marcado um encontro. Quanto mais se aproximava, mais meu coração se exaltava.

Em alguns passos largos, o aparente desamparo cedeu espaço à altivez, e naquele momento eu soube que ele não só sabia que estava sendo observado, como faria de tudo para impressionar a espectadora. Logo surgia um sorriso luminoso e um ar altivo, metamorfoseando o grandalhão envergonhado num galã tranquilo. Ele cumprimentava os conhecidos de modo a não me perder de vista. Eu tinha então 32 anos de idade, e, ainda que ele tivesse mais que o dobro, era tão atraente quanto qualquer homem mais jovem. Não apenas porque era o autor de tantas coisas de que eu gostava, mas também porque era forte e bonito, de olhos brilhantes e sorriso perfeito. E porque sua melancolia indisfarçável me encantava. Eu também era melancólica, e achei que só um homem como ele poderia entender. E estava certa. Na mesma noite, conversamos em volta da fogueira. Na mesma noite, fui convidada para um drinque em sua casa. Alguns dias depois, saímos para jantar.

Em pouco tempo, compreendi algo a seu respeito que se confirmaria em todos os momentos que vieram a seguir: ele precisa de plateia. A timidez — sim, ele é tímido — se esvanece quando acendem os holofotes. É como se, sozinho, ele não fosse nada além de um homem. E tenho ainda a impressão de que ser somente um homem é algo que sua vaidade não permite. Porque ele age como se fosse um salvador. Seja das filhas, seja das mulheres que namora ou da pátria. E tenho de dizer que isso realmente me incomodava. Mas, de resto, eu estava encantada. Quanto mais o conhecia, mais convicta ficava de que a palavra que melhor o definia era “vaidade”. Em tudo, o homem é um poço de vaidade. Mas o curioso é que ela nunca vinha sozinha — o desamparo e a vaidade eram características tão fortes quanto indissociáveis de sua personalidade. Por isso, é impossível falar de uma sem remeter à outra. À primeira vista, um observador desavisado pode achar que ele é vaidoso ao extremo. Ponto. Talvez seja. Mas ele é muito mais do que isso. Como eu disse, começo pela casca. O que existe embaixo é sempre muito diferente.

“Não sou um vaidoso óbvio, típico e linear. Como disse uma vez o FHC, a quem todos chamavam de vaidoso: ‘Sou mais inteligente que vaidoso’ ”
Ele fala sem parar. Fala muito, animadamente, com exuberância e volúpia. Conta histórias, teoriza, papagueia, analisa, explica tudo e tem solução para a vida de todos que o cercam — exceto para a dele. Mete o bedelho em tudo e jamais cogita a possibilidade de estar errado. Odeia estar errado e fica muito mal-humorado quando provam que está. Parte disso se deve ao seu ofício, já que vive de dar pitaco no Brasil. Jabor age como se todos os enredos desse mundo fossem uma eterna repetição ou variação sobre o mesmo tema. Eu gostava de escutá-lo. Só ficava alarmada quando queria desesperadamente dormir e ele insistia em me contar (de madrugada) qual o sentido da existência. Foi aí que apareceu a primeira grande diferença entre nós: eu sou funcionário, ela é dançarina, como diz o Chico. No caso, funcionária e dançarino. Quando apago, ele acende. E, além de dormir cedo, sei que vou morrer sem compreender os mistérios da existência.



O primeiro traço de vaidade apareceu com muita rapidez, nessa falta imperdoável de autoironia. Ele se leva muito a sério. Mas disso eu já sabia — basta lê-lo ou vê-lo na TV. Uma noite eu pedi que, por favor, parasse de falar, porque eu realmente estava exausta e só pensava em dormir. A resposta, um tanto perturbadora, foi: “Mas estou te dando a oportunidade de entender melhor a vida, Kika!” Claro que o tom foi de chacota, mas no íntimo era sério. Como eu (ou alguém) podia desperdiçar a oportunidade gloriosa de ouvi-lo divagar?

Ele acha que sabe das coisas. Não sabe tanto, mas não sou eu quem vai dar essa notícia. Porque, por trás da verve e da condição de salvador, existe uma ingenuidade comovente. Acha que todos que o conhecem gostam dele. Eu diria que as ex-mulheres não concordam, mas, tirando o Plínio Marcos, que homem é querido pela ex? Além disso, eu também me acho ótima, mas é bem provável que algum ex ateste o contrário. O que quero dizer é: do nosso ponto de vista, estamos quase sempre certos e fazemos tudo direitinho. Eu sou assim, você é assim e o Jabor é assim. A diferença é que aceito que tem gente que não pensa desse modo. Ele, não. Fica chocado quando alguém assume o desafeto ou o acusa. Essa pureza — ou cegueira? — é realmente inquietante.

Seu maior medo era o medo da morte. “Um dia tudo vai estar aí e eu não vou estar aqui. Isso é insuportável. Isso ninguém elabora.” O que é compreensível. Mas acho que sua maior dificuldade era enfrentar o envelhecimento. Havia uma recusa até mesmo em usar essa palavra. Talvez por estar na TV e por ter sido um jovem lindo (eu vi as fotos. Posso garantir). A recusa em aceitar que envelhecera motivava atitudes como rasgar algumas fotos que fiz dele em nossa viagem pela Itália, porque “parecia um velho”, ou o choque que sentiu ao se tornar avô: “Quando vejo os meus netos e a família de minhas filhas plenamente constituída, tenho vontade de comprar uma bengala”. Isso tudo, é claro, me deixava muito constrangida, porque eu simplesmente não podia dar a notícia de que, sim, a velhice já chegara. Jabor tem 70 anos.

No quesito aparência, seu cuidado é extremo: cremes para a pele, reflexo invertido nos cabelos (o que os torna grisalhos em vez de brancos), dentista, dermatologista, manicure, pedicure, esteticista… Tudo para evitar o inevitável. Só não fez plástica. Cuidava, e ainda cuida, muito bem da saúde. Nada mais de 1 000 metros diariamente, faz musculação, a alimentação é regrada e orientada por nutricionistas, não fuma, bebe pouco, dorme muito. Acho que ter sido pai pela terceira vez aos quase 60 anos deu a ele um ânimo e um sentimento de obrigação em relação à vida que o impele à vitalidade. Mas também acho que existe outra razão.

Em tudo o que faz, ele quer ser “perfeito”. Não basta ter um texto bom, é preciso ser o melhor. Algumas vezes ouvi desconcertada que “numa boa, eu sou o melhor texto da imprensa brasileira”. Não basta ser bonito e saudável, é preciso ser lindo. Às vezes como piada, outras não, ele dizia que “numa boa, eu sou um gatinho”. É terrível ouvir isso da boca de um homem que beirava os 70, como se preocupar-se em ser “gatinho” a essa altura fizesse algum sentido. Não basta voltar a filmar, é preciso fazer uma superprodução de mais de 10 milhões de reais. Até mesmo quando compra um carro ou uma tela, precisa que os outros elogiem. A vaidade é só a película protetora que envolve o refém do profundo desamparo que é correr insanamente atrás da autossuperação, feito um hamster engaiolado, num esforço interminável e solitário.

A grande dificuldade dessa relação foi que esse empenho frenético em ser perfeito respingou em mim. Além do desconforto de ser sempre observada, e de não poder andar de qualquer jeito, tinha o desconforto de estar sempre perseguindo a perfeição. Para namorar o homem-quase-perfeito, eu tinha de ser a mulher igualmente idealizada. Cansei de ouvir “Kika, eu só quero te ajudar a atingir a perfeição!”. Mas viver atrás da perfeição é no mínimo extenuante.

“Falei em tom de chacota porque não sou um débil mental para dizer: ‘Eu quero que você atinja a perfeição’. Tudo isso foi dito rindo e com autoironia”
Tudo deu errado desde o início. Ele era um mito para mim. Mas não há mito que resista à intimidade. Se eu não tivesse visto com tamanha nitidez o homem frágil por detrás de meu herói, talvez nunca tivesse de fato gostado dele. E a mesma coisa que o humanizou e conquistou o meu amor nos afastou — a realidade. Quando enxerguei nele o homem, vi também tudo o que nos separava. A maior distância era o tempo. Todos os sonhos e desejos que eu tinha eram anacrônicos se pensasse em vivê-los perto dele. Eu queria me casar de novo. Queria ter mais filhos. Queria fazer doutorado no exterior. Queria uma vida simples e tranquila, sem holofotes nem honrarias. E, em tudo o que eu queria, ele simplesmente não cabia. O fim foi triste, como todo fim deve ser triste. Se não fosse, era porque o amor não existira. Mas foi também libertador. Fui libertada do ideal inatingível de mulher que eu não sou — e não serei. E o libertei para que gire em sua gaiola sem que alguém tente mostrar que ela é redonda.

Tags: arnaldo jabor, kika salvi

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