segunda-feira, 19 de julho de 2010

FLORES PARA MINHA AVÓ...Luciane Trevejo


O vento estava forte e gelado.

Um velório de alguém querido, numa tarde praticamente sem sol e eu com uma malha fina, despreparada para a mudança de temperatura.

À noite, ao retornar pra casa, sentia o corpo dolorido, a cabeça pesada e não tinha ânimo sequer para tomar um banho quente, um bom analgésico e me deitar embaixo das cobertas.

Criei forças e entrei no chuveiro , afinal, banho é um dos maiores luxos que desfrutamos sem nem ao menos nos darmos conta .

Entrei embaixo das cobertas e comecei a chorar.

Ele ficou preocupado, quis saber o que se passava, afinal eu não ia chorar por sentir frio ou dor de cabeça.

-Eu quero a minha avó. Não quero que ela morra, não quero…

-Mas sua avó está bem, Xú!

-Não, ela está velhinha e logo vai embora, eu sei…

-Não, Xuxú, sua avó é forte, espere aí que vou te preparar um leite quente.

Lembro de tudo, toda a minha vida foi permeada por ela e por meu avô.

Desde que minha memória consegue alcançar, lembro -me que dormia com ela, em sua enorme cama de imbuia toda trabalhada em rococó.

Acordava-se cedo, vovô ia cuidar dos pescadores, abrir as peixarias, levar peixes pro Ceasa…

Eu acordava junto e pedia que ele me trouxesse uma asa de anjo, para que eu pudesse enfim voar. Mas ele sempre enfrentava contratempos espetaculares e nunca conseguia comprar a tal asa.

E para me consolar da falta de asas, ela me trazia o leite na cama.

Se eu tinha tosse, lá ia ela, preparar o leite quente com açúcar queimado…

Quando eu tinha algum desarranjo, (hoje chama-se virose), ela fazia purê de batata e se eu não quisesse comer coisa alguma, ela preparava aquela panelada de costelinha de porco , arroz, feijão e batata frita.



E tinha uma panela preta, que não sei explicar como é que era, mas eram dois lados que se encaixavam e lá ela colocava pão com manteiga e ficava virando a panela de um lado pro outro, de modo que o pão ficava uniformemente torradinho.

Pão torrado com café preto.

Bolinho de chuva. EU ficava sentada, olhando extasiada, como pode ela ter aprendido essa mágica de fazer uma coisa virar outra? Aí, como se já não estivesse bom, ela jogava açúcar e canela por cima. Nem precisava chover… Era lá, o meu paraíso, o meu lugar de paz…

Ela fumava cigarro de palha. …Esses dias fui ao mercadão e senti o cheiro de fumo de corda.

O cheiro da minha avó!

Cheiro é uma coisa incrível, né? Cheiro nos transporta!

Eu tinha bronquite e algum cabra desses bem safados, inventou de dizer que gordura de capivara curava qualquer bronquite. Tinha que ser dado pela manhã, junto com um pouco de café,que era pra ” enganar o gosto da gordura”. Como se alguma coisa no universo tivesse esse poder, de enganar o gosto da tal da gordura de capivara. Esse foi um dos motivos de eu não gostar de acordar cedo.

Na verdade, eu queria era não ter que acordar nunca, pois acordar estava diretamente ligado àquele copo enorme de café com capivara. Mas como não há bem que sempre dure nem mal que nunca se acabe, finalmente foi proibida a caça às capivaras e aquele foi um dia de festa, uma festa dentro de mim!!! Mas de todo modo, nunca mais tive bronquite.

Um dia, eu estava muito doente, (eu sempre estava doente, repare) com pouco mais de 6 anos, e lembro que por causa da nefrite, fiquei meses e meses sem comer sal e proteína. Fomos para uma cidade vizinha, maior e com mais recursos que a nossa, levar os exames pro médico ver. Ele leu tudo e me perguntou:

-O que você mais gostaria de comer agora?

-Carne de porco e batata frita e coca cola e sorvete de chocolate e Milk shake só se for servido naquele copinho que tenho da festa do sorvete.

-Só isso?

-Só.

Ele olhou pra elas e disse:

-Levem ela pra casa, e deixem que ela coma tudo o que tiver vontade de comer. É só isso o que vocês podem fazer por ela.
Acho que médico pensa que criança é tonta, né? Claro que entendi o que aquilo queria dizer. Mas não deixei de ficar feliz pela possibilidade de sentir o gosto da carne, da batata e da coca cola mais uma vez que fosse.

Enquanto minha mãe tentava disfarçar algumas lágrimas, minha avó se levantou, olhou pro relógio e disse:

-É cedo ainda. Saindo daqui agora, em duas hora estaremos em Bauru, e lá conheço um médico ótimo. Vamos, se levantem, temos que ir!

E foi assim que ela salvou minha vida.

Salvou a mim, amparou suas filhas, seus genros, seus netos….tooodos eles, todos!

Meu avô não teria conseguido passar a vida ao lado de uma mulherzinha. Tinha que ser exatamente como ela era, a fortaleza inabalável ,uma mulher que não se enjoa e nem se cansa, pra poder fazer par com ele.

Verdadeiros Lampião e Maria Bonita de minha vida.

Ela, junto a ele, foi envelhecendo sem que déssemos conta disso.

Lembro de como era engraçado ficar naquele sofá da sala entre os dois, ouvindo a conversa acerca dos programas de TV. Ela explicava uma coisa, e apontava pra TV com aquele dedo indicador torto por causa da artrite , e conforme apontava pra TV, seu dedo indicava a porta da rua. Ele olhava, olhava, e como não ouvia direito, menos ainda entendia quando ela falava olhando pra TV e apontando pra porta da rua. Era um diálogo engraçadíssimo.

Ela se aborrecia por ele não entender e ele se aborrecia por ela não explicar direito.

-Você tá surdo, Américo!

-Pois deixa de ser besta, mulé!

-Eu to falando do Silvio Santos, olha na mão dele, o maço de dinheiro!

-E eu to olhando! Lá fora, não tem nenhum verdureiro! Aaaaaara !Deixa de ser abestada!

-Seu avô tá caduco, tá vendo?

Eles se amavam tanto…Agora entendo isso. Ninguém consegue ficar uma vida toda junto, brigando, discutindo, divergindo, e sempre, sempre juntinho um do outro se não tiver amor demais.

Foi difícil pra ela. Muito mais pra ela do que foi pra todos nós, quando ele partiu.

Mas como não se tem outro jeito, ela continuou vivendo…

Hoje ela já não fuma mais seu fumo de corda, anda muito pouco e usa fraldas.

Todos nós juntos nunca daremos conta de fazer por ela , oque ela fez por cada um de nós.

Se eu choro? É claro que choro.

Estamos longe uma da outra e queria poder segurar suas mãos, como ela segurou as minhas.

E ainda queria ouvi-la dizer que pra tudo dá-se um jeito.

Queria poder mergulhar no seu mundo de contos e histórias de comadre e bolinhos de chuva e esquecer de tudo!

Como posso não chorar, sabendo que um dia ela não estará mais por aqui?

Ah, minha vozinha, essas linhas são pra você. Pra ficar registrado o quanto eu te amo.

Eis aqui as minhas flores pra senhora.

Receba-as e sinta seu perfume agora, que ainda estamos todos aqui.

Porque depois que você se for, eu não terei mais inspiração e sei que vai demorar muito pras flores voltarem a crescer no meu jardim…

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