terça-feira, 7 de junho de 2011

A POESIA POPULAR DE JOÃO BATISTA DE SIQUEIRA...

DOIS COQUEIROS

Testemunhas seculares
Do outro lado do rio
Rumor das brisas lunares
Nas calmas noites de estio
Foram vigias de feras
Venceram eras e eras
Se tornaram centenários
Os seus bulícios tristonhos
Tinham a doçura dos sonhos
De mil poemas lendários.

Com prazeres recebiam
O pequeno rouxinol
Eram os primeiro que viam
A face alegre do sol
Sentiram as mesmas mágoas
Beberam das mesmas águas
Queimados do mesmo pó
Colheram o mesmo sereno
Viveram num só terreno
Nasceram num dia só.


Com todo viço aumentaram
As duas plantas vizinhas
Em pouco tempo chegaram
Ao mundo das andorinhas
Neve, chuva e cerração
Frio, sereno e verão
Nada disso o atingiram
Vencedores das idades
Nem as próprias tempestades
Tempo algum lhes aluíram.

Nas brisas que perpassavam
Brandas ou mais violentas
Eles os dois conversavam
Numas frases barulhentas
Receberam temporais
Deslocamentos fatais
Por brusco arrojo dos ventos
Viveram nestes combates
Lutando contra os embates
Da força dos elementos.

Assim aqueles coqueiros
Cheios de viço e enganos
Se tornaram dois guerreiros
Foram lutar contra os anos
Um ao outro em homenagem
Nos bafejos da aragem
Estendiam a palha sua
Cada fronde, verde e bela
Conservava uma parcela
Da luz serena da lua.

Suas palhas sussurrantes
Continham graça e beleza
Dois monstruosos gigantes
Criados da Natureza
Desde a fronde às raízes
Todas suas cicatrizes
Foram profundas feridas
Cada marca, uma história
Uma medalha, uma glória
De cem batalhas vencidas.

Em certos dias marcados
Choveu torrencialmente
Foram os dois abraçados
Por poderosa corrente
Um rodava, outro pendia
A água se remexia
Numa fúria de dragão
O mais fraco, já vencido
Num arrojo desmedido
Caiu sem ter salvação.

Ficou o outro coqueiro
Em meio à corrente, em pé
Como se fosse um guerreiro
Sem esperança e sem fé
Se balançava, tremia
Tombava, depois se erguia
Entre o furor do perigo
E a morrer se dispunha
Como a maior testemunha
Da morte de seu amigo.

No horroroso fragor
Já se mostrava pendido
Sentiu faltar-lhe vigor
Foi ficando esmorecido
A água em borbotão
Fazia revolução
Da superfície à areia
Caiu no mesmo momento
Ao impulso violento
Dos solavancos da cheia.

As grandes vagas caudais
Desciam ligeiramente
Sem ter resistência mais
Se lançou sobre a corrente
O aguaceiro o levou
E junto ao outro deixou
Por um ligeiro desvio
Ficando os dois encostados
Onde estão sepultados
Do outro lado do rio.

* * *

O ÉBRIO

Há um ébrio aqui parede e meia
Que o infortúnio lhe fez um sorteado
Descalço, sem pão, esfarrapado
Sendo o mais conhecido na cadeia.

Chora, canta, soluça, palavreia
Pela voragem do vício deformado
Ninguém sente nem olha o desgraçado
Que por sorte desdita cambaleia.

Vive fora de toda humanidade
Caídos às vezes nos bancos da cidade
Exposto à chuva, a frieza e ao mormaço

Enquanto tomba e tropeça sem alento
Este povo, de menos sentimento
Zomba e ri o tomando por palhaço.

* * *

MEU LUGAREJO

Meu recanto pequenino
De planalto e de baixio
Onde eu brincava em menino
Pelos barrancos do rio
Gigantescos braunais
Meus soberbos taquarais
Cheios de viço e vigor
Belas roseiras nevadas
Diariamente abanadas
Das asas do beija-flor.

A terra da catingueira
Criada na penedia
Onde a ave prazenteira
Canta a chegada do dia
Planalto, ribeiro, prado
Onde até o próprio gado
Parece ter mais prazer
Terreno das andorinhas
Onde arrulham mil rolinhas
Quando começa a chover.

A borboleta ligeira
Que desce do verde monte
Passa voando maneira
Roçando as águas da fonte
As aragens dos campestres
Pelas florzinhas silvestres
Atravessam sem alarde
Quando o sol se debruça
A Natureza soluça
Nas sombras do véu da tarde.

Terreno em que os sabiás
Cantam com mais queixumes
Belas noites de cristais
Cravadas de vaga-lumes
Meus mangueirais magníficos
Por onde os ventos pacíficos
Atravessam mansamente
Verdes matas perfumadas
Nas lindas tardes toldadas
Das cinzas do sol poente.

Esvoaçam, preguiçosas
As abelhas pequeninas
Tirando néctar das rosas
Das regiões campesinas
Os colibris multicores
Pelos serenos verdores
Perpassam com sutileza
O orvalho cristalino
Lembra o pranto divino
Dos olhos da Natureza.

Palmeiras que o rouxinol
Canta ainda horas inteiras
As auras do pôr-do-sol
Soluçam nas laranjeiras
A pelúcia aveludada
De muitas flores bordada
Desde o vale até o outeiro
Lugar em que cada planta
Soluça, sorri e canta
Pelos trovões de janeiro.

Deslumbra a gente o encanto
Das borboletas douradas
Pousarem no róscio santo
Das manhãs cristalizadas
Fingem variadas fitas
De fato que são bonitas
Porém se fingem mais belas
Que a divina Natureza
Por ter-lhes posto a beleza
Deu mais vaidade a elas.

Oh, noite de lua cheia
De minha terra querida
Lindas baixadas de areia
Princípios da minha vida
Lugares de despenhado
Onde gozei, descansado
Sombra, frescura e carinho
Bosque, vale, serrania
Lugares onde eu vivia
Em busca de passarinho.

Os colibris delicados
Pelas manhãs de neblina
Passam voando vexados
Na vastidão da campina
Nos frondosos jiquiris
Dezenas de bem-te-vis
Elevam seus madrigais
Lugar que grita o carão
Olhando o santo clarão
Primeiro que o dia traz.

As pequeninas ovelhas
Descem buscando o aprisco
Colhendo ainda as centelhas
Do sol ocultando o disco
Seguem pelas mesmas trilhas
Como que sejam as filhas
Dum pastor que lhes quer bem
Recebendo ainda as cores
Dos derradeiros rubores
Que o céu do oeste tem.

Vivia sempre brincando
Fosse de noite ou de dia
Na alma se apresentando
Um mundo de poesia
Minhas queridas delícias
Aquelas santas primícias
Se passaram como um hino
Hoje só resta a lembrança
Do tempo em que fui criança
No meu torrão pequenino.

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