sábado, 4 de maio de 2013

LITERATURA DE CORDEL...

 
 
Zé Cardoso glosando o mote:
Essa roupa de couro empoeirada
É a prova que vim lá do sertão.
 
A lembrança do campo, ainda carrego,
Porque foi minha única faculdade.
No momento que eu entro na cidade,
Eu me sinto perdido e não lhes nego:
Eu sei dar nó de porco, dou nó cego,
Mas um nó de gravata, eu não dou não.
Mas, caindo uma corda em minha mão,
Num segundo tá feita uma laçada.
Essa roupa de couro empoeirada
É a prova que vim lá do sertão.
* * *
Dedé Monteiro glosando o mote:
A vida só tem sentido
Enquanto houver ilusão.
 
Entrei na maré do vício
Sem conhecer suas águas,
Tentando afogar as mágoas
Do meu cruel sacrifício.
Quis me arrepender no início,
Mas faltou disposição…
Fiquei procurando, em vão,
O que nem tinha perdido…
A vida só tem sentido
Enquanto houver ilusão.
* * *
Rafael Neto glosando o mote:
 
Me afoguei na maré da sedução
Quando o barco do amor perdeu o rumo.
 
Já cruzei muitos mares caudalosos,
Porém nesse eu quase perco a vida.
Nesse barco a passagem é só de ida
Nos prazeres dos mares ondulosos,
Meus desejos carnais são poderosos
Pra tirar minha vida do seu prumo,
E pra viver ou morrer eu mesmo assumo,
Que o culpado de tudo é a paixão
Me afoguei na maré da sedução
Quando o barco do amor perdeu o rumo.
* * *
Salomão Rovedo glosando o mote:
 
Pobre cu que não tem sorte
Solta um peido a merda vem.
 
Um ataque agudo e forte
Bem pior que dor-de-parto
Rasga violento e farto
Pobre cu que não tem sorte.
Mais forte que a dor-da-morte
E dor-de-viado também
Castiga sempre alguém
Como fosse dor-de-corno
A tripa faz um contorno
Solta um peido a merda vem.
* * *
Gilmar Leite glosando o mote:
 
O silêncio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras
 
Mergulhei nos abismos infernais
Que nem Dante deu passos com Virgílio
Na procura de achar algum auxílio
Eu sofri nos subúrbios marginais.
Vi o ocaso nas horas matinais
Entre os braços de estranhas criaturas
Que me abraçavam nas horas escuras
Pra sugar do meu corpo um gemido
O silêncio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras.
Troquei beijos com bocas amargosas
Sob as luzes de um velho candeeiro
E senti de alguns corpos podre cheiro
Entre as névoas de noites vaporosas.
Hoje as marcas das dores horrorosas
São sinais dos momentos de loucuras
Machucando minh’alma com torturas
E deixando o meu ser enlouquecido
O silêncio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras.
Inda sinto o tremor das mãos sujas
Afagando o meu corpo pecador
Ao invés do prazer sentia dor
E no meu peito a voz dizendo fujas.
Entre as brechas das telhas as corujas
Agouravam as minhas desventuras
Eu gritava pra Deus lá nas alturas
Leve logo este ser que é tão sofrido
O silêncio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras.

Quantos homens chegavam embriagados
Dando chutes na porta como loucos
Os gentis para mim foram tão poucos
Eram seres tristonhos, reservados.
Eu perdi a noção dos meus pecados
Pela fome com facas de perjuras
Que cortava minha alma com agruras
E sangrava o meu peito já ferido
O silêncio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas desventuras.
Sobre a cama meu corpo se tremia
De fraqueza, de fome e de sede;
Noutro canto meu filho numa rede
Quem olhasse pensava que dormia.
Mas a fome causava-lhe agonia
Lhe roubando fagulhas de venturas
Eram cenas cruéis de vidas duras
Condenadas num mundo corrompido
O silêncio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras.
Hoje eu vivo jogada ao relento
Sem um teto sequer para dormir
O passado, o presente e o porvir,
Me jogaram no duro calçamento
Condenada num frio isolamento
O meu corpo só tem as ossaturas
Pra os insetos fazerem aventuras
Ferroando o que já foi consumido
O silêncio da noite é quem tem sido
Testemunha das minhas amarguras.
* * *
Um folheto de Salete Maria da Silva
MULHER TAMBÉM FAZ CORDEL
FOLHETOF
O folheto de cordel
Que o povo tanto aprecia
Do singelo menestrel
À mais nobre academia
Do macho foi monopólio
Do europeu foi espólio
Do nordestino alforria
 
 
Desde que chegou da França
Espanha e Portugal
(Recebido como herança)
De caravela ou nau
O homem o escrevia
Fazia a venda e lia
Em feira, porto e quintal
Só agora a gente vê
Mulher costurando rima
É necessário dizer
Que de limão se faz lima
 
 
Hoje o que é limonada
Foi águas podre, parada
Salobra com lama em cima
A mulher não se atrevia
Nesse campo transitar
Por isso não produzia
Vivia para seu lar
Era o homem maioral
Vivia ele, afinal
Para o mundo desbravar
Tempo de patriarcado
Também de ortodoxia
 
 
À mulher não era dado
Sair pela cercania
Exibindo algum talento
Pois iria a julgamento
Quem não a condenaria?
Era um tempo obscuro
Para o sexo feminino
O castigo era seguro
Para qualquer desatino
Como não sabia ler
Como podia escrever
E mudar o seu destino?
 
 
Sem ter a cidadania
Vivendo vida privada
Pouco ou nada entendia
Não era emancipada
Só na cultura oral
Na forma original
Se via ela entrosada
Nas cantigas de ninar
Na contação de história
Tava a negra a rezar
A velha sua memória
 
 
Porém disso não passava
Nada ela registrava
Para sua fama e glória
Muitas vezes era tida
Como musa inspiradora
Aquela de cuja vida
Tinha que ser sofredora
 
Era mãe zelosa e pura
Qual sublime criatura
Porém não era escritora
Sempre a versão do homem
Impressa nalgum papel
Espero que não me tomem
Por feminista cruel
Mas o fato é que a mulher
Disto temos que dar fé
Tinha na vista um véu
 
 
O homem que a desejava
Queria-a qual princesa
Sempre que a venerava
Era por sua beleza
Só isto tinha virtude
Para macho bravo e rude
Mulher com delicadeza
De sua cria cuidando
Cosendo calça e camisa
Para o homem cozinhando
 
 
Como vir ser poetisa?
Isto era coisa para macho
Até hoje ainda acho
Gente que assim profetiza.
Até porque o folheto
Era vendido na feira
E era um grande defeito
Mulher sem eira nem beira
Era preciso viagens
Contatos e hospedagens
Pra fazer venda ligeira
E durante muitos anos
Assim a coisa se deu
Em muitos cordéis tiranos
A mulher emudeceu
 
 
O homem falava dela
Mas não falava com ela
Nem ela lhe respondeu
Ocorre que em trinta e oito
No ano mil e novecentos
Um fato dito afoito
Veio soprar outros ventos
Uma mulher escreveu
 
 
No cordel se intrometeu
Mostrando novos talentos
Talvez seja o primeiro
Cordel de uma mulher
Neste solo brasileiro
Nenhum registro sequer
Confere a este fato
Que seja o dito exato
Mas não é coisa qualquer
Filha de um editor
Família de trovadores
Se esta mulher ousou
A ela nossos louvores
Mas temos a lamentar
Porque não pode assinar
O verso como os autores
Não era uma desvalida
Que escrevia um cordel
Mas uma moça entendida
Parente de menestrel
 
 
Mesmo assim se escondia
Pois a vida requeria
Não assumir tal papel
A Batista Pimentel
Com prenome de Maria
Não assinou o cordel
Como a história merecia
Mas que o destino tirano
Um Altino Alagoano
Era quem subscrevia
Pseudônimo usou
Para a obra ser aceita
O marido orientou:
“Assim tudo se ajeita”
Tava pronto pra vender
Quem poderia dizer
Ser o autor a sujeita?
Neste tempo já havia
Escola, educação
Alguma mulher já lia
Tinha certa instrução
Tinha delas que votavam
Outras até trabalhavam
Nalguma repartição
 
 
Outro tempo aparecendo
Reclamando outra postura
A população crescendo
Emprego e certa fartura
Indústria se instalando
O povo se empregando
Buscando alguma leitura
Mas foi muito gradual
No campo do popular
Tinha aqui um bom sinal
E um retrocesso acolá
No nordeste nada é reto
Até hoje analfabeto
Não conhece o bê-á-bá
 
 
Somente em setenta e dois
Vicência Macedo Maia
Viria escrever depois:
Nascia o verso de saia!
No estado da Bahia
Deu-se a tal rebeldia
Que hoje não leva vaia
Depois disso, alagoana
Potiguar e cearense
Também tem a sergipana
Paraíba e maranhense
Tem delas no Piauí
Também estão a surgir
Paulista e macapaense
 
 
Em todo o nosso Brasil
Mulheres versejam bem
Muito verso se pariu
Não se excluiu ninguém
Tem rima a dar com pau
— acho que me expressei mal —
Pois com a vagina também
Mas a grande maioria
Se concentra no nordeste
Onde um dia a poesia
Era do cabra da peste
 
 
Hoje as mulheres estão
Rimando e não é em vão
Do litoral ao agreste
Talvez seja sintomático
Que o cordel no sertão
Ainda seja simpático
E noutros lugares não
O tal cordel já foi tido
Como jornal e foi lido
Em muita ocasião
Serviu para ensinar
Muita gente aprender a ler
Serve para recitar
E muita gente entreter
 
 
Cordel é sempre estudado
Em tese de doutorado
Mas tem gente que não vê
Alguns pensam hoje em dia
Que cordel é só tolice
Que não tem categoria
Que é mera invencionice
Feito por homem, não presta
Por mulher então, detesta
Veja quanta idiotice
 
 
Mesmo assim elas versejam
E muito bem por sinal
Algumas até desejam
Ir para uma bienal
Mostrar a nossa cultura
A nossa literatura
Etecetera e coisa e tal
Versos de todos matizes
De toda forma e cor
Algumas são infelizes
Reproduzindo o horror
Do machismo autoritário
Consumismo perdulário
Que tanto as dominou
Mas são as contradições
Presentes neste sistema
Onde mulheres padrões
Vivem também nos esquemas
 
 
Eu só quero é celebrar
Da mulher o versejar
Longe dos velhos dilemas
Nosso tempo nos permite
Botar o verso na rua
Quem vai colocar limite
Quem ousa sentar a pua?
Cordel também é cultura
Quem nunca fez a leitura
Iletrado continua
O cordel é centenário
Nesse Brasil de mistura
É recente no cenário
Da fêmea a literatura
Só estamos começando
Devagar, engatinhando
Quem agora nos segura?
Trinta cordéis eu já tenho
Publicados pelo mundo
Mais uma vez me empenho
Me emocionando no fundo
Metade é sobre mulher
Para mostrar como é
Amor e verso profundo
 
 
Aqui encerro meu verso
Cumprindo o meu papel
Se ele foi controverso
Deselegante ou pinel
Só quis dizer para o povo
O que para alguém é novo:
Mulher também faz cordel!

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