Um folheto de José Pacheco
Caro leitor se não lestes
mas alguém já vos contou
que nos remotos passados
até barata falou
porém isto foi no tempo
quando o Trancoso reinou.
Eu ainda estou lembrando
que meus bisavós contavam
muitas histórias passadas
de quando os bichos falavam
como bem fosse a da festa
quando os cachorros casavam.
Nesse tempo os animais
era tudo interesseiro
só se casavam com bichas
que os pais tinham dinheiro
tanto que devido a isto
um gato morreu solteiro.
Contudo sempre viviam
em regimes sociais
respeitando aos governos
ao atos policiais
crendo no catolicismo
conforme a lei de seus pais.
Não eram lá tão chegados
à nossa religião
mas não desvalorizavam
nem faziam mangação
dizem até que macaco
deu provas de bom cristão.
Tamanduá era padre
como todos sabem disto
naquele tempo também
pelos antigos foi visto
uma lavadeira velha
lavando a roupa de Cristo
Muitos viviam da arte
outra parte do roçado
na vida comercial
quem era rico e letrado
aqueles mais pobrezinho
viviam do alugado.
Como bem a lagartixa
o calango e o teju
que são pelados de tudo
da mesma forma o tatu
que tem somente o casco
e aquilo que faz pufu.
Com este verso eu aviso
a quem atenção me presta
que vou tratar dos cachorros
e da grandiosa festa
talvez que nunca se visse
outra melhor do que esta.
Havia um cachorro velho
chefe da localidade
os outros lhe veneravam
com respeitabilidade
tanto porque era o chefe
como pela sua idade.
Tinha relações com todos
era muito acreditado
não tinha muito dinheiro
como grande potentado
mas também não era desses
que come um pão apertado.
Tinha uma filha bonita
trabalhava em seu socorro
dessas que se diz assim:
por aquela eu mato e morro
capaz de embelezar
o coração dum cachorro.
Certo dia um primo dela
vindo duma batucada
passando pelo terreiro
ela estava acocorada
catando pulga e matando
no batente da calçada.
Bom dia querida prima
o cachorro assim falou
ela respondeu: bom dia
e disse, como passou
então, como vai meu tio?
o mesmo lhe perguntou.
Palestraram bastante
cada qual bem satisfeito
foi um namoro pesado
porém com muito respeito
mas para se apartarem
não tinha quase jeito.
Trocaram dúzias de beijos
ambos ali abraçados
choravam um pelo outro
e todos dois agarrados
devido a grande amizade
quase que ficam pegados.
Chegou em casa escreveu:
prima do meu coração
eu não posso deslembrar-me
da tua linda feição
portanto venho pedir-te
tua delicada mão.
Recomendação a todos
um abraço em minha tia
sem mais assunto desculpe
a ruim caligrafia
deste teu primo cachorro
edcetera e companhia.
Depois fez no envelope
um ramalhete de flor
ele mesmo foi levar
pra dar mais prova de amor
e mesmo é muito custoso
cachorro ter portador.
Chegou ela estava só
prosaram mais de uma hora
depois apertou-lhe a mão
deu-lhe a carta e foi embora
ela ficou tão contente
quando leu que quase chora.
Quando o velho viu a carta
disse logo que não dava
mas ela bateu nos peitos
lhe dizendo que casava
o velho jurou de dar-lhe
e que amaldiçoava.
A velha também foi contra
os parentes não queriam
os irmãos quando souberam
todos numa voz diziam
que esse tal casamento
o pai nem eles faziam
Disseram: ele é parente
mas anda de cachaçada
é um liso e não trabalha
portanto não vale nada
e por fim até juraram
de botar-lhe uma emboscada.
A cachorra à noite disse:
a ele você não comem
eu acho conveniente
que nova reforma tomem
porque eu só não me caso
se cachorro não for homem.
Ou fazem o meu casamento
ou então de madrugada
eu vou arribar com ele
e fico sendo amigada
embora nossa família
fique desmoralizada.
O velho considerando
da desmoralização
disse pra ela: eu te caso
mas sustento opinião
de nem cruzar teus batentes
nem te botar mais bênção.
Depois ele disse aos filhos:
de noite depois da ceia
vamos fazer isto logo
se não ela se aperreia
e vai nos fazer vergonha
na força da lua cheia.
Não havia inimizade
todos os bichos se davam
quando casava uma bicha
com muito gosto ajudavam
ainda que fosse rica
de gastar não precisavam.
Vamos tratar dos presentes
que a noiva recebeu
sapato, roupa e capela
a dona preguiça deu
aranha mandou-lhe um véu
que ela mesma teceu.
Guariba deu-lhe um buquê
da barba do guaribão
o gato deu aliança
o timbu, deu a loção
o preá deu um bilro
o rato deu-lhe um botão.
O noivo também comprou
agulha, linha e dedal
uma panela e dois pratos
uma colher de metal
balaio de guardar ovo
vasilha de botar sal.
Abano, esteira e pilão
um ralo e um samburá
marmita, gamela e cuia
vassoura, estopa e puçar
fez a conta e depois disse:
pra quem é pobre já dá.
No dia do casamento
estava tudo arrumado
faltava somente a carne
para tratar do guisado
com pouco cada cachorro
chegava mais carregado.
Um trazia um pinto morto
não sei onde foi achá-lo
outra trazia também
uma ossada dum galo
teve um que trouxe até
o mocotó dum cavalo.
Vinha um com tanto troço
que no caminho quase cansa
umas queixadas d’um burro
os encontros d’uma gansa
pedaços de couro velho
pontas de boi da matança.
Uma parenta do velho
era até boa parteira
pegava cachorro novo
ali naquela ribeira
por ser curiosa e limpa
foi servir de cozinheira.
Chegou e disse: meu povo
eu vim porque fui chamada
porém estou com rabuge
e muito encatarrada
o dono da casa disse:
ora comadre, isto é nada.
Temos ai muita carne
arroz, macarrão, farinha
guise lombo e faça bife
torre porco, encha galinha
eu quero é que todos digam
que na festa tudo tinha.
Está certo meu compadre
disse um cachorro cotó
disse a noiva, sendo assim
eu hoje encho o bozó
disse o noivo: eu como tanto
que o rabo chega dá nó.
O velho disse: comadre
você é a governante
tome conta da cozinha
ai tem um ajudante
de tarde chega mais três
penso que quatro é bastante.
Pode trabalhar com gosto
vá pedindo o que faltar
não tema que seu trabalho
quando a festa terminar
o seu compadre cachorro
tem com que recompensar.
Qual lá meu compadre velho
respondeu a cozinheira
lá para o fim do pagode
você dá qualquer besteira
e com relação a preço
entre nós não tem ladeira.
Eu quero é que meu compadre
mande um comprar tempero
eu vou preparando a carne
diga que volte ligeiro
porque se não tratar logo
pode até criar mau cheiro.
Então o velho entregou
o dinheiro e um saquinho
dizendo: traga dois cocos
e um quilo de cominho
vamos ver que desmantelo
assucedeu no caminho.
O cachorro ia fazer
como seu chefe mandou
botou o dinheiro dentro
do saco e depois dobrou
botou debaixo do rabo
saiu e disse: eu já vou.
Mas lá no meio do caminho
viu uma casa caída
com uma parede em pé
porém bastante pendida
ele ali foi urinar
quase que perdia a vida.
Ele encostando-se nela
mais ou menos abalou
e lá vai por cima dele
porém o cabra pulou
faltando o palmo dum grilo
para se dizer: matou.
É este o motivo justo
que quando vão urinar
ainda sendo uma moita
só mija quando escorar
gato escaldado tem medo
de água fria o pelar.
Afinal sempre seguiu
até que chegou na feira
fez as compras pra voltar
numa pisada ligeira
mas aconteceu-lhe outra
pior do que a primeira.
Quando ele foi passou
num rio bastante cheio
como ia sem carrego
atravessou pelo meio
quando veio tinha mais água
quase que vai no paleio.
Chegou na margem do rio
esbarrou na ribanceira
vinha os dois cocos no saco
ele amarrou na traseira
e apertou o tempero
debaixo da macaxeira.
Então dentro do embrulho
vinha um anel que comprou
era de um seu amigo
que a ele encomendou
teve medo de perder
no tal pacote botou.
Mas quando bateu nas águas
desmantelou-se o papel
desceu com o tempero e tudo
quando saiu de revel
olhou debaixo da cauda
tinha somente o anel.
Todo seu acontecido
chegou em casa contou
mas ninguém acreditava
o chefe lhe maltratou
dizendo, que o dinheiro
ele bebeu e jogou.
Onde trazia o tempero
cabra safado mesquinho?
assim perguntou-lhe o chefe
ele mostrou o cantinho
um cheirou e disse: é certo
que tem cheiro de cominho.
É por isto que cachorro
tem uma certa ciência
de cheirar onde o tempero
deixou uma grande essência
qualquer que duvidar nisto
faça sua experiência.
Ele ficou tão vexado
que pensou que perdeu tudo
o chefe lhe perguntou
ele respondeu trombudo:
até eu quase me afogo
quanto mais troço miúdo.
Mas dum lado tinha um
desses gomos miudinhos
e disse a ele: rapaz
tu só perdesse o cuminho
olhou por detrás e disse:
olha os cocos no saquinho.
Finalmente sempre a festa
da casa grande a barraca
corria cachimbo e vinho
licor, gasosa e truaca
gritava o cachorro velho:
bota pra diante a fuzarca.
Veio muitas qualidades
entre bicho bom e mau
paca tocava pandeiro
tatu corneta de pau
urso tocava num buzo
macaco num berimbau.
Mestre galo era o marcante
da quadrilha no salão
timbu era despachante
na boca do garrafão
o gato fiscalizava
as panelas no fogão.
Estava a festa animada
a carne ali abortou
porém por causa dum osso
grande briga se travou
deram uma tapa no gato
que o cabelo avuou.
Ali o dono da casa
riminou-se contra os tais
meteu a ripa pra cima
dando em todos animais
correram deixando a sala
só com ele e ninguém mais.
Meus leitores essa historia
que vosso poeta fez
o meu bisavó contava
meu avô disse uma vez
o meu pai contou a mim
eu hoje conto a vocês.
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