sexta-feira, 23 de novembro de 2012

LITERATURA DE CORDEL...


Às musas quero pedir 
competência nesta hora
para uma estória narrar,
a qual ocorreu outrora.
E em meio à população
repercute ainda agora.
Existia no sertão 
numa fazenda importante,
pertencente a um coronel,
que era rico bastante,
um barbatão indomável,
astucioso e possante.
Vaqueiro nenhum havia
que nele pusesse a mão.
Simplesmente era impossível,
em qualquer ocasião,
um cavalo obter êxito
em sua perseguição.
Léguas e léguas de terra
que a vista não alcança
media a propriedade
cujo nome era Esperança.
Pra percorrer tanta terra
até urubu se cansa.
Na dita fazenda havia
nascido um boi e crescido.
Vaqueiros da redondeza
tinham forças despendido,
porém pegar o tal boi 
nenhum tinha conseguido.
Cavalos bons com vaqueiros
trajando roupas de couro,
botina, espora e chibata,
voando tal qual besouro,
não conseguiam chegar
ao menos perto do touro.
Os animais se esforçavam
na carreira mato afora
vencendo despenhadeiros,
castigados na espora,
descendo e subindo serra
cansados, línguas de fora.
Equilibrados na sela,
 se agachando ou levantando
com a maior agilidade,
espinhos e paus driblando,
mas os vaqueiros só viam
o boi na frente bufando.
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Às vezes passavam dias
procurando no cercado
uma pista ainda que fosse
um rastro no chão deixado…
Dificilmente encontravam
o barbatão desgarrado.
Porém, se acaso o avistavam
o animal se escafedia
correndo desabalado
no meio da mataria
numa  rapidez tamanha,
igualmente ventania.
Cascos tinindo nas pedras,
galhos secos estalando,
corridas desembestadas,
cavalos quase voando
fustigado por esporas, 
o sangue em gotas pingando.
Para um lado e para o outro
freios com força puxados.
De quando em vez uma queda
com alguns ossos quebrados.
Na sela os bravos vaqueiros
cada vez mais bem grudados.
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Tudo em vão, o boi malhado
sempre desparecia
como se fosse visagem
no meio da mataria.
Para a vaqueirama era
mais um “round” que perdia.
Nesta vida tudo tem,
afinal, uma saída.
Pra cada sim há um não.
Só há morte se houver vida.
Para quem está com fome
o remédio é a comida.
Problema sem solução
o tempo todo não fica.
A corda que amarra a carga,
às vezes, demais estica
e termina arrebentando. 
No final, tudo se explica…
Eis que um dia apareceu
para os filhos do vaqueiro
um bode preto retinto
que exalava estranho cheiro,
sem marca de qualquer dono,
circulando no terreiro.
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O vaqueiro, que foi sempre
ao patrão muito fiel,
de pronto ferrou o bode,
pois julgou ser seu papel,
incorporando o caprino
às posses do coronel.
Por ali ficou o bode,
a tudo bastante atento.
Foi crescendo e em pouco estava
da altura de um jumento.
Tornou-se da meninada
o melhor divertimento.
Os meninos deram logo
para nele andar montados.
Corria feito uma flecha
por matos e descampados.
Tanto corria pra frente
como pulava pros lados.
Um vaqueiro da fazenda
sempre muito curioso
montou um dia no bode,
quando um novilho fogoso
na sua frente correu
de modo desafioso.
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O bode partiu atrás,
parecendo ventania,
alcançando em poucos metros
o animal que fugia,
o qual, com um puxão no rabo,
ao chão num instante caía.
Em vista disso, o vaqueiro
bolou uma ideia então,
transmitida aos companheiros
e informada ao patrão.
Acharam todos que aquilo
não passava de ilusão.
A ideia consistia
em o vaqueiro ir montado
no bode preto e pegar
o arisco boi tresmalhado.
Aos outros pareceu que
ele estava amalucado.
Juntou gente para ver
a tremenda palhaçada.
Onde já se viu alguma
vez tamanha trapalhada?
Nunca em parte alguma foi
coisa tão louca tentada.
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Não quis esporas, também
não usou sela nem freio.
Vestiu a roupa de couro,
montou sem qualquer receio
no bode, que disparou
no mato de espinhos cheio.
Deu um aviso aos colegas:
“Tirem lenha, acendam fogo,
preparem também o molho
que quando eu entro num jogo
é pra ganhar a parada,
não quero choro nem rogo!
Sequer um naco de carne
exijo da parte minha.
Do bicho só quero a língua
pra comer crua, inteirinha…”
Montou e o bode voou,
parecendo que asas tinha.
Embocaram sem demora
por dentro do matagal.
Inclusive, houve quem visse
que os olhos do animal
pareciam duas tochas
acesas num festival…
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O mato abriu e fechou.
Logo se viu a poeira
levantar no alto da serra.
Iam deixando na esteira
 a bicharada espantada,
tão danada era a carreira.
Neste ínterim, o boi
encontrava-se deitado,
após beber numa gruta,
remoendo, descansado,
quando ouviu descendo a serra
o bode desembestado.
Ao escutar o tropel,
já saiu em disparada…
Mais rápido que uma bólide,
saiu quebrando a galhada.
Nem bala o alcançaria
naquela mata fechada.
O tempo fechou-se e então
teve início a correria.
Foi mesmo um deus nos acuda.
O mato fechava e abria
com o vaqueiro colado  
no lombo da montaria.
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Já fazia mais de hora
que o bode estava correndo.
Nele o vaqueiro grudado,
carrapato parecendo,
o boi voando na frente
no carreirão mais tremendo.
No cocuruto de um monte,
para encurtar a distância,
o bode fez finca-pé
na mais incontida ânsia
e pulou de um morro a outro
sem nenhuma relutância.
Espichou-se o quanto pôde,
até com certo esnobismo,
mas não foi bem sucedido
e despencou no abismo.
Porém sua aterrissagem
não foi nenhum cataclismo.
Pousou de leve, aprumado,
nem encostou a barriga
no chão, mas perdeu o prumo
e foi de encontro a uma antiga
aroeira que havia
robusta como uma viga.
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A velha árvore, no impacto,
como um talo de capim
foi ao chão de imediato.
Jamais se viu algo assim!
À frente, o boi prosseguia
na disparada sem fim.
Quanto mais ele corria,
mas via o bode encostado.
Distâncias eram vencidas
e o bode ali quase ao lado,
parecendo aproximar-se
o final do seu reinado.
Chegaram numa planície,
um mais na frente, outro atrás,
quase sem fôlego, arquejantes,
por dentro dos matagais.
Nenhum entregava os pontos,
cada qual correndo mais.
Não se sabe como foi,
mas naquela correria,
por onde apenas mocó
normalmente passaria,
passava o boi sempre com
o bode na companhia.
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O vaqueiro, em dado instante, 
ficou num pau enganchado.
O bode freou ligeiro,
voltou para ser montado.
Reiniciou a corrida
com o vaqueiro no costado.
Perdeu distância, porém
disparou com valentia.
Os ouvidos do vaqueiro
açoitava a ventania,
mas nem o boi nem o bode
cansavam da tropelia.
Naquela carreira insana
avistaram de repente
uma espécie de muralha
que fechava toda a frente;
obstáculo intransponível
era aquele, certamente.
Nesse momento, o vaqueiro
considerou-se perdido.
Jamais tamanho embaraço
na corrida tinha havido.
Para o pior preparou-se:
um choque no muro erguido.
11
Mas, um segundo após viu-se
são e salvo do outro lado;
uma substância havia
suas pestanas colado;
passou a língua nos beiços,
sentiu tudo açucarado.
Na verdade, era a muralha
um aripuá enorme
que, com a velocidade,
lhes pareceu desconforme.
Simples ilusão de ótica,
realidade disforme.
Na perseguição, o bode
com o vaqueiro no lombo
sem que houvesse entre dois
ao menos um leve tombo,
o aripuá transpassaram
provocando nele um rombo.
Atrapalhou só um pouco
das abelhas o trabalho.
Mas prosseguiu a corrida
sem qualquer outro atrapalho.
Apenas a indumentária 
já se fazia em frangalho.
12
Ao cabo de várias horas
de correria sem trégua,
em que não se calculava
a quantidade de légua,
visível era a canseira
daqueles filhos da égua.
Tinha o boi já começado
a dar sinais de cansaço.
Fora inaudito o esforço
em meio a poeira e mormaço.
O bicho, ao olhar pra trás,
só via o bode no encalço.
Deu para emitir uns urros
esquisitos nessa hora.
Ignorava que o bode
mantinha a língua de fora,
também já quase nas últimas,
 não aparentando embora.
Não havia mais lugar
para espinhos no vaqueiro:
mandacaru, xiquexique,
unha-de-gato, facheiro.
De tudo quanto era espinho
fizera-se ele hospedeiro.
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Mas quando cuidou da vida
teve uma grata surpresa:
avistou a casa-grande
da fazenda e a redondeza,
os currais, gente acenando 
e uma fogueira acesa.
Era o fogo do churrasco;
pátio coalhado de gente…
Então um vento soprou
no chão daquele ambiente,
atingindo qualquer coisa
que encontrasse pela frente.
No desembesto que vinha
o boi voou sobre a casa,
o bode seguiu no rastro,
os olhos da cor de brasa,
parecendo até que tinham
em lugar de patas, asa.
O vaqueiro nesta hora
semelhava um camarão,
de tão vermelho que estava.
Ainda acenou com a mão.
Quem viu a cena achou que  
era uma alucinação.
14
Uma forte ventania
apagou logo a fogueira,
encrespou a água do açude,
derrubou uma porteira, 
pra completar, arrancou
de uma casa a cumeeira.
Naquela confusão toda,
todo mundo apatetado,
ouviu-se um grande estampido,
foi grito pra todo lado
e todos então sentiram  
cheiro de enxofre queimado.
Depois do caso passado
foi unânime a conclusão:
o boi, o bode e o vaqueiro
sumidos na explosão,
só poderia ter sido 
do diabo uma armação…
O que aqui contei em versos
eu li, já faz um tempão,
no capítulo de um livro
que se intitulava então,
se não me engano, Amor,
Fuxico e Emancipação.
15
Era uma estória incrível,
bem narrada, simples, bela…
Passados quarenta anos,
pus de novo os olhos nela.
Hoje o livro tem por título:
O Atestado da Donzela.
Por achar interessante,
não perdi a ocasião,
pois imediatamente
convoquei a inspiração
e escrevi este cordel
com a melhor intenção.
De tamanho atrevimento
eis aqui, portanto, o saldo.
Ao final, só resta agora
ao cordelista o respaldo
do criador da estória:
o doutor José Nivaldo.
Bom Jardim, janeiro de 2012 

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