sábado, 19 de maio de 2012

DO CEGO ADERALDO...


Aderaldo Ferreira de Araújo  (Jun/1878 — Jun/1967)
A PELEJA DO CEGO ADERALDO COM JOSÉ FRANCO (FRANCALINO)
Registrada por Luís da Câmara Cascudo no livro Vaqueiros e Cantadores
De folhas de oiticica
Estava um barracão bem feito
José Francalino disse:
Cantar aqui não aceito
Homem que canta em barraca
Não pode cantar direito
Com muito rogo o cantor
Aceitou sempre o assento
Mandou que eu me sentasse
Do outro lado do vento
Colocou o povo em roda
E nós ficamos no centro
Ele afinou a viola
E começou o baião
Eu afinei a rabeca
Dei a mesma entoação
Agitou-se o pessoal
Para ouvir a discussão
Francalino
Senhores, dêem-me licença
Funcionar a garganta
Mostrar ao cego Aderaldo
A minha palavra santa
Meu eco treme a colina
Parece que o bosque canta
Cego Aderaldo
Dê-me licença, senhores
Ó riquíssima personagem
Cantar com esse cantor
Que vem com tanta vontade
Dizendo que sua voz
Para o vento é a miragem
Francalino
Cego cante com cuidado
Que eu sou homem benquisto
Você hoje fazendo um erro
Fica pelo povo visto
E eu faço com você
Como Juda fez com Cristo
Cego Aderaldo
Então o amigo quer ser
Rebelde conspirador?
Não faça escravo de quem
Ainda pode ser senhor
Porque você me vendendo
Vai minorar minha dor
Francalino
Eu não quero te vender
Dei-te apenas explicação
Tu como cego de tudo
Já vens com malcriação
Quem faz de cachorro gente
Fica com o rabo na mão
Cego Aderaldo
Sr. José Francalino
Vós mudastes de sintoma
Já me queimou com a língua
Como o fogo de Sodoma
Dai-me ao menos teu retrato
Que eu guardo em minha redoma
Francalino
 
Eu não quero é chaleirismo
Vim aqui formar divisa
Saber hoje da certeza
Dos dois qual o simpatiza
Do amigo Zé Pretinho
Eu vim hoje vingar a pisa
Cego Aderaldo
Desculpe que eu não sabia
Que tu era cangaceiro
Do grande José Pretinho
O cantor piauzieiro
Você hoje leva lembrança
Pra si mais seu companheiro
Francalino
Então cego venha a mim
Que eu sou conspirador
Saiba qu’eu tenho profissão
Na arte da cantador
Nunca cursei academia
Porém sou quase um doutor
Cego Aderaldo
Por tua frase eu conheço
Versos puxado a cambito
Pronome que só se encontra
Na gramática do maldito
Palavra ainda do tempo
Que besouro era mosquito
Francalino
Cego você não suponha
Que eu sou cantor da mata
Dizem que sua rabeca
Tem todas cordas de prata
Ela quebra e o dono apanha
Tome nota, dia e data
Cego Aderaldo
Francalino você está
Com um olho preto e outro roxo
Fala em dar-me uma surra
Queira deus não volte chocho
Então comece o martelo
Parte cedo quem é coxo
Francalino
Cego, sustenta a rabeca
E tome muito sentido
Não perca roteiro e rima
Trabalhe bem resumido
Que eu venho hoje preparado
Só quebrar-lhe o pé do ouvido
Cego Aderaldo
Francalino desinfeta
Alma de lobo marinho
Serpente que traiu Eva
Coruja errante sem ninho
Seca de setenta e sete
Toco velho de caminho
Francalino
Cego, tu só tem cabeça
Porque fósforos também têm
Barriga de vuco-vuco
Teu nariz de vai e vem
Te casa com uma raposa
Pra seres raposa também
Cego Aderaldo
És sapo canuaris
Barriga de chimpanzé
Cara de todos os bichos
Catimbó de Zé-Pajé
Sobra de esmola de cego
Currimboque sem rapé
Francalino
Tu és um cego sem jeito
Um cinturão sem fivela
Uma casa sem ter gente
Um porta sem tramela
Um sapato sem ter dono
Um anzol sem ter barbela
Cego Aderaldo
Puxa fogo cabeleiro
Instinto do mal, Lusbel
Febre negra de acobaça
Dentes de leão cruel
Judas que cuspiu em Cristo
Entranhas de cascavel
Francalino
Puxa, puxa, cego velho
Te sustenta a renitiva
Apanha hoje, não tem jeito
De chorar ninguém lhe priva
Tu ronca no nó da peia
Apanha até dizer viva
Cego Aderaldo
Fora, José Francalino
Porque tu não canta bem
Olho de boto vermelho
Boca de carro de trem
Cabelo de urso africano
Venta de chama quem vem
Francalino
 
Fora, cego Aderaldo
Que berra tanto e não pára
No peso de meia libra
Ele não dá uma tara
Cego eu só vim de encomenda
Para rebentar-lhe a cara
Cego Aderaldo
Vai-te sarro de cachimbo
Guarda-chuva de parteira
Boca de comprar fiado
Chinela de cozinheira
Bode mocho, pé de pata
Guardanapo de parteira
Francalino
Cego, vai-te para o inferno
E lá será teu desterro
Língua de contar mentira
Boca que só solta erro
Tu berra hoje como vaca
Correndo atrás do bezerro
Cego Aderaldo
Palhaço de Pastorinha
Trapo do forro do lixo
Cama suja de hospital
Lêndea de pulga de bicho
Cangalha sem cabeçote
Sela velha sem rabicho
Francalino
Cego a que tempo nós estamos
Jogando de carta e sota
Quando um bota o outro tira
Quando um tira o outro bota
Só ouço o riso do povo
E ninguém falar da cota
Cego Aderaldo
Não quero que fale em cota
Bornal de preto aleijado
Calunga de mamulengo
Saco de guardar pecado
Terra de cobrir defunto
Cemitério de enforcado
Francalino
Cego por ora deixemos
Não nos convém pelejar
Ninguém se sustenta em riso
Riso não dá pra engordar
Deixemos para outra vez
Quando nós se encontrar
Cego Aderaldo
Desocupa nuvem negra
Cururu rouco de cheia
Bagageiro de cigano
Fedentina de cadeia
Pescoço de jabuti
Alpercata sem correia
Francalino
Você cante com mais jeito
Deixe de ser malcriado
Faça um serviço bem feito
Para ser apreciado
Eu não pensei que você
Fosse tão mal educado
Cego Aderaldo
Francalino, você sabe
Que quem canta com razão
De soltar para o amigo
Gracejo e malcriação
Mesmo quem canta martelo
Não pode ter concessão
Francalino
Então você continue
Com suas obras singelas
Já estou lhe achando a feição
Com a cor muito amarela
Quero saber se tu canta
Dez linhas feita em parcela
Cego Aderaldo
Francalino, pode vir
Mas não perca uma só linha
Homem que canta parcela
Tem horas de adivinha
Não vá meter-se na sala
Depois ficar na cozinha
Francalino
Sou homem de alto relevo
Não solto palavra à toa
Em parcela e gabinete
A minha rima revoa
Vamos nós experimentar
Neste salão quem entoa
Cego Aderaldo
 
Siga logo, Francalino
Com seu trabalho desejoso
Repare o que vai fazendo
Seja muito cuidadoso
Veja se canta a parcela
Não seja tão preguiçoso
Francalino
Balanço e navio
Navio e balanço
Água em remanso
Procura o desvio
O desvio procura
Carreira segura
Segura carreira
Molhando a barreira
Das águas escuras
Cego Aderaldo
A barca farol
O farol da barca
Lumina na arca
Os raios do sol
O mesmo arrebol
Faz a luz tão quente
A maré crescente
Na força da lua
A barca flutua
Nas águas pendentes
Francalino
Passa o automóvel
O automóvel passa
Só pela fumaça
Tudo se comove
Fica o povo imóvel
Fica imóvel o povo
O motor é novo
É novo o motor
Como não parou
Teve seu aprovo
Cego Aderaldo
Flauta e flautim
Flautim e flauta
Muita gente alta
Toca bandolim
Brada e cavaquim
Sax e bombardão
Trompa e violão
Violão e trompa
Grita os cabras rompa
Entra o rabecão
Francalino
Vida boa esta
Na dança animada
Não nos falta nada
Todo mundo presta
No vigor da festa
Não se vê tormento
Naquele momento
O mestre faz curveta
Engole a palheta
Do seu instrumento
Cego Aderaldo
Briga e barulho
E barulho e briga
Por causa de intriga
Rola o grande embrulho
Fica no vasculho
O grito da guerra
Mesmo em qualquer terra
Havendo revolta
Desce grande escolta
Do cimo da serra
Francalino
Mudemos o sentido
Para nós cantar
Vamos martelar
Que é mais conhecido
Esteja prevenido
Com a voz ativa
Faça retintiva
Hoje aqui na sala
Não tropece a fala
Minha língua é viva
Cego Aderaldo
O homem guerreiro
Se quiser teimar
Comigo brigar
Seja cangaceiro
Fique bem veleiro
Na sua emboscada
Venha a madrugada
Mesmo em minha terra
Que homem de guerra
Nunca teme a nada
Francalino
Vai minha parcela
Muita apreciada
Não sendo cansado
Gosto muito dela
Se torna mais bela
Assim desse jeito
Sou cantor perfeito
Para qualquer sala
Só com escala
Tu estás satisfeito
Cego Aderaldo
Vamos, Francalino
Endireite a goela
Você na parcela
Pra mim é menino
Perdes o destino
Da tua morada
Não sabe a estrada
Por onde chegou
Meu chiquerador
É teu camarada
Francalino
Cego sem leitura
Cante prevenido
Que no teu sentido
Se mora loucura
Quer fazer figura
Hoje no salão
Se és valentão
Pego no topete
Lasco-te o bofete
Que tu beija o chão
Cego Aderaldo
Sai-te, molambudo
Caixeiro sem venta
Ladrão de fazenda
Com molambo e tudo
Corto-te miúdo
Te deixo em farelo
Sujeito amarelo
Caboclo sem sorte
Hoje a tua morte
Foi cantar martelo
Francalino
Hoje à noite brigo
Porque me disponho
Mostro o ar risonho
Para algum amigo
Mas faço contigo
Um trabalho direito
Dou-te um mal no peito
Que tu sais tossindo
E eu fico me rindo
Muito satisfeito
Cego Aderaldo
Rogaste uma praga
Porém não me pega
Porque Deus te entrega
Centenas de chaga
Só assim tu paga
O que tu me deve
Para que te serve
Ser tão impossível
De apanhar tu vive
E a lembrança leve
Francalino
Você conheceu
A minha chegada
Nesta pátria amada
Que você nasceu
O que sucedeu
Foi eu vir sozinho
Como sou machinho
Vim formar a divisa
Você paga a pisa
Que deu no Pretinho
Cego Aderaldo
Atrás da vingança
Se você chegou
Meu chiquerador
Dá-lhe uma esperança
Não quero é ganança
Que esta terra é minha
Tu não adivinha
O meu ameaço
Eu dou-te um abraço
Na ponta da linha
Francalino
Deixemos agora este cântico
Como uma nuvem que embaça
Reconheço que a festa
Está como os festins da praça
Eu ganhando ainda canto
Não convém cantar de graça
Cego Aderaldo
É verdade Francalino
O cantor bom vem de raça
A tua cantiga é
Saborosa do céu massa
Eu também paro a rabeca
Não convém cantar de graça
Francalino
Cego se aparecer
Um homem que a bolsa faça
Pois aqui tem gente boa
Da riqueza a grande massa
Mas para não ganhar nada
Não convém cantar de graça
Cego Aderaldo
Francalino, chegou vinho
Vamos esgotar a taça
Agora somos amigos
Os dois cantores se abraça
Desculpa-me se te ofendi
Não convém cantar de graça
Francalino
Já vi que o povo queriam
Ver nós dois numa desgraça
Porque estávamos comprando
Barulho, intriga, por braça
Dai-me a mão, somos amigos
Não convém cantar de graça
Cego Aderaldo
Uma língua faladeira
Queima, papoca, que assa
Diga a José Pretinho
Que outra intriga não faça
Porque nós dois conciliamos
Não convém cantar de graça
Francalino
Cego Aderaldo, eu ainda
Voltarei a este lugar
Tenho livros importante
E neles vou estudar
A surra de Zé Pretinho
Pretendo ainda vingar.

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