quarta-feira, 2 de maio de 2012

CORDEL....


 
João Martins de Athayde (Jun/1880 – Ago/1959)
Um folheto de João Martins de Athayde
O DESAFIO DE BERNARDO NOGUEIRA COM PRETO LIMÃO
Em Natal já teve um negro
Chamado Preto Limão
Representador de talento
Poeta de profissão
Em toda parte cantava
Chamando o povo atenção
Esse tal Preto Limão
Era um negro inteligente
Em toda parte que chega
Já dizia abertamente
Que nunca achou cantador
Que lhe desse no repente
Nogueira sabendo disto
Prestava pouca atenção
Dizendo: – eu nunca pensei
Brigar com Preto Limão
Sendo assim da raça dele
Eu não deixo nem pagão
O encontro destes homens
Causou admiração
Que abalou o povo em roda
Daquela povoação
Pra ver Bernardo Nogueira
Brigar com Preto Limão
Bernardo Nogueira
Eu sou Bernardo Nogueira
Santificado batismo
Força de água corrente
Do tempo do Sacratíssimo
Quando eu queimo as alpercatas
Pareço um magnetismo
Preto Limão
Me chamam Preto Limão
Sou turuna no reconco
Quebro jucá pelo meio
Baraúna pelo tronco
Cantador como Nogueira
Tudo obedece meu ronco
Bernardo Nogueira
Seu ronco não obedeço
Você pra mim não falou
Até o diabo tem pena
Das lapadas qu’eu lhe dou
Depois não saia dizendo:
- Santo Antônio me enganou!
Preto Limão
Bernardo eu não me enganei
Agora é que eu pinto a manta
Cantor pra cantar comigo
Teme, gagueja, se espanta
Dou murro em braúna velha
Que o entrecasco alevanta!
Bernardo Nogueira
Você pra cantar comigo
Precisa fazer estudo
Pisar no chão devagar
Fazer o passo miúdo
Dormir tarde, acordar cedo
Dar definição de tudo…
Preto Limão
Você pra cantar comigo
Tem de cumprir um degredo
Pisar no chão devagar
Bem na pontinha do dedo
Dar definição de tudo
Dormir tarde, acordar cedo…
Bernardo Noqueira
Cantor que canta comigo
Estira como borracha
O suor do corpo mina
Os olhos salta da caixa
Quer tomar pé mas não pode
Procura o fôlego e não acha…
Preto  Limão
Nogueira, estás enganado
Queira Deus você não rode
Teimar com Preto Limão
Você quer porém não pode
Se cair nas minhas unhas
Hoje aqui nem Deus acode!
Bernardo Nogueira
Moleque, se eu te pegar
Me escancho em tuas garupas
Das pernas eu faço gaita
Da cabeça uma cumbuca
Dos queixos um par de tamanco
Da barriga chupa-chupa
Preto Limão
Nogueira se eu te pegar
Até o diabo tem dó!
Desço de goela abaixo
Em cada tripa dou nó
Subo de baixo pra cima
E vou morrer no gogó
Bernardo Nogueira
Da forma qu’eu te deixar
Não vale a pena viver
Porque teus próprios amigos
Não hão de te conhecer
Corto-te os beiços de cima
Faço te rir sem querer!
Preto Limão
Você vai ficar pior
Send’eu já estava chorando
Porque de ora em diante
Hás de falar bodejando
Corto-te a ponta da língua
Fica o tronco balançando
Bernardo Nogueira
O resto de tua vida
Terás muito o que contar
Dês de perto, abertamente
Se acaso desta escapar
Diga que foste ao inferno
Depois tornaste a voltar
Preto  Limão
Tive uma pega com Inácio
Moleque bom na madeira
É negro que não se afronta
Com dez léguas de carreira
Dum açoite que dei nele
Quase larga a catingueira
Bernardo Nogueira
Você cantou com Inácio
Porém só foi uma vez
E faz vergonha contar
O que foi qu’ele te fez
Te pôs doente um ano
Aleijado mais dum mês
Preto Limão
Inácio não me fez nada
Porque vivia cismado
Duma surra qu’eu dei nele
Há vinte do mês passado
De preto ficou cinzento
Quase morre asfixiado
Bernardo Nogueira
Moleque tu me conhece
Como cantor afamado
No lugar qu’eu ponho a boca
É triste teu resultado
Tive uma pega com Inácio -
Já vi serviço pesado!
Preto Limão
É porque você não viu
Preto Limão enfezado
Acendia os horizontes
De um para o outro lado
Rasga as descendências dele
De um negro encondensado
Bernardo Nogueira
Tive aperreado um dia
Fiz a terra dar um tombo
No recreio da parcela
O mar é surdo urubombo
Cobrí o mundo de fogo
E nada me fez assombro
Preto Limão
Você fazendo tudo isso
Dá prova de homem forte
Eu já o considerava
Pela sua infeliz sorte
Se você chegasse a ir
Ao Rio Grande do Norte
Bernardo Nogueira
Se eu for lá ao Rio Grande
Até você desanima
O sol perderá seus raios
A terra, o mundo e o clima
Tapo a boca do rio
Deixo correndo pra cima!
Preto  Limão
Se me tapares o rio
Verás como eu sou tirano
Rasgo pela terra adentro
E vou sair no oceano
Deixo a maré do Brasil
Enchendo uma vez por ano!
Bernardo Nogueira
Moleque, o que você tem?
Parece um pinto nuelo?
Contaste tanta façanha
Como estás tão amarelo?
Quanto mais você se visse
Seu Nogueira no martelo
Preto Limão
Se eu cantar o martelo
Você encontra banzeiro
Qu’eu perco a fé em doente
Quando muda o travesseiro
Afinal siga na frente
Qu’eu irei por derradeiro
Bernardo  Nogueira
O cantor qu’eu pegá-lo no martelo
Pego na goela
O cabra esmorece
A língua desce
Os olhos racha
Salta da caixa
Por despedida
Procura a vida
Porém não acha
Preto Limão
Tenho chumbo e bala
Para seu Nogueira
Cantador goteira
Pra mim não fala
Dentro duma sala
Fica entupido
E amortecido
E sem recurso
Até o pulso
Lhe tem fugido
Bernardo Nogueira
É na bebedeira
Que o preto morre
Tropeça e corre
Topa ladeira
Mede porteira
E passadiço
E alagadiço
Se for com trama
Se encontrar lama
Topa serviço
Preto Limão
Duro de fama
Dura bem pouco
Que o pau que é oco
Não bota rama
Chora na cama
Qu’é lugar quente
Quebro-te os dente
Furo-te a língua
Faço-te íngua
Cabra insolente
Bernardo Nogueira
Ante o perigo
É qu’sou valente
Sou a serpente
Do tempo antigo
Negro comigo
Não tem ação
Boto no chão
Quebro a titela
Arranco a moela
Levo na mão
Preto Limão
Nogueira, tu reparaste
Num sujeito que chegou?
Trouxe um recado urgente
Que minha mulher mandou
Por hoje eu não canto mais
Fique cantando qu’eu vou…
Bernardo Nogueira
Não quero articulação
Vá se embora seu caminho
Canário que estala muito
Costuma borrar o ninho
Quem gosta de surrar negro
Não pode cantar sozinho
***
Naquele mesmo momento
Saiu o Preto Limão
Deixou o povo na sala
Tudo em uma confusão
Uns diziam que correu
Outros diziam que não
Quando o Preto voltou
Nogueira tinha saído
Preto Limão disse ao povo:
- Vão chamar o atrevido
Venham olhar bem de perto
Como se açoita um bandido
Foram chamar o Nogueira
Estando ele descansado
Deitado na sua rede
Quando chegou-lhe o recado
Nogueira com muito gosto
Foi acudir ao chamado
Quando Nogueira chegou
Encontrou Preto Limão
Acuado numa sala
Ringia que só leão
Naquele mesmo momento
Começaram a descrição
Preto Limão
Cantador qu’eu pegá-lo de revez
Com o talento qu’eu tenho no meu braço
Dou-lhe tanto que deixo num bagaço
Só de murro, tabefe e pontapés
Só de surras eu dou-lhe mais de dez
E o povo não ouve um só grito
Faz careta e se vale do Maldito
Miserável, tua culpa te condena
Mas quem é que no mundo terá pena
Deste monstro que morre tão aflito?
Bernardo Nogueira
Cantador com Nogueira não peleja
Sendo assim como o tal Preto Limão
Só se for pra tomar minhas lição
Ele engole calado e não bodeja
Vai comendo da mesa o que sobeja
Precisa me tratar com muito agrado
No instante fazer o meu mandado
É de pressa, é ligeiro, é sem demora
Qu’eu não gosto de moleque que se escora
Pois assim é qu’eu o quero por criado
Preto Limão
Vale a pena não seres cantador
É melhor trabalhares alugado
Vai cumprir por aí teu negro fado
Vai viver sob o ferro dum feitor
Da senzala já és um morador
Teu trabalho é lá na bagaceira
O que ganhas não dá pra tua feira
Renego tua sorte tão mesquinha
Que te assujeitas às amas da cozinha
E te ofereces pra delas ser chaleira
Bernardo Nogueira
Este homem já vive desvalido
É descrente de Deus e da Igreja
Lucifer o teu nome já festeja
Tu só podes viver é sucumbido
Sois tão ruim que só andas escondido
Para Deus nunca mais serás fiel
Tua raça é descendente de Lusbel
Que do Céu já perdeste a preferência
Farás tua eterna convivência
Lá embaixo dos pés de São Miguel
Preto Limão
Tu pareces que vinhas na carreira
Sempre olhando pra frente e para trás
Como quem chega assim veloz de mais
Eu vi bem quatro paus de macaxeira
Uma jaca partida e outra inteira
Também vi dois balaios de algodão
Creio que tu já foste um ladrão
Com o peso fazia andar sereno
Às dez horas da noite, mais ou menos
Encontrei-te com esta arrumação
Bernardo Nogueira
Meus senhores de dentro do salão
Este enorme convívio de alegria
Exaltar este homem é covardia
Só lhe falta o nome de ladrão
Para o povo tem sido muito exato
Só o que tem é que peru, galinha e pato
No lugar que ele mora não se cria
Muita gente aqui já desconfia
Que ele passa lição a qualquer rato
Preto Limão
Quiosque fechado não se vende
Cantador sem rimar é desfeitado
Como tu neste banco te alevantas
Não precisa que o povo me encomende
Quem é cego de nada compreende
Vive numa masmorra anzolado
Por que eu já o tenho projetado
Desta tua incivil sorte mesquinha
Eu te deixo no mato sem caminho
Sob as garras dum gancho pendurado
Bernardo Nogueira
Cantador capoeira não me aguenta
Inda duro e valente qu’ele seja
Com Bernardo Nogueira não peleja
Adoece, entisica e se arrebenta
Dou na testa, dou na boca, dou na venta
Desta pisa ele fica amortecido
Endoidece, fica vário do sentido
Eu o boto na roda e no manejo
Ficará satisfeito meu desejo
Pra não seres cantador intrometido
Preto Limão
Te arrepende da hora que nasceste
Seu Nogueira como é tão infeliz
Tua vida no mundo contradiz
Contra mim pelejando não venceste
Na prisão de masmorra já sofreste
Tua vida já perde as esperança
Eu armei uma forca e uma balança
Num minuto hás de ser bem degolado
Ficará todo mundo consolado
Preto Limão só assim terá vingança!
Bernardo Nogueira
Eu já tenho um moinho de quebrar osso
Uma prensa inglesa preparada
Qu’inda ontem imprensei um camarada
Qu’era duro, valente e muito moço
Eu já tenho guardado o teu almoço
Qu’é um bolo de ovos com manteiga
Pra cantor malcriado que lá chega
Eu agarro na gola desse cuba
Piso a carne diluída e faço puba
Se eu não matar levo ele para a pega
Preto Limão
Quando eu apareço numa casa
Que me mandam então eu divertir
Quatro, cinco dias vê cair
Relâmpago, trovão, curisco e brasa
Cantador comigo não se atrasa
E quem for valente, já morreu
A tocha de fogo já desceu
Meu martelo é de ferro e aço puro
Cantador comigo está seguro
Nunca houve um martelo como o meu…
Bernardo Nogueira
Você diz que no martelo é atrevido
E somente porque não considera
Você nas minhas unhas desespera
Fica louco e quase sem sentido
Numa hora ficarás doido varrido
Teu repente não passa de besteira
As peiadas que eu te dou levanta poeira
Todo o povo já lhe tem é compaixão
Eu te deixo embolando pelo chão
Como porco que bebe manipueira
Preto Limão
Dou-te sufregada
Dou-te tapa-queixo
Com pouco te deixo
Com a boca lascada
A língua puxada
Três palmo de fora
Casco-te as esporas
P’rós teus suvaco
Faço raco-raco
Danado, tu chora!
Bernardo Nogueira
Dou-te bofetão
No pé do cangote
Eu vou no pacote
Do Preto Limão
Eu boto no chão
E piso a barriga
Espirra a lombriga
Os pinto comendo
O povo dizendo:
- Agüenta a espiga…

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