Por Gerivaldo Neiva *
“Se eu pudesse novamente viver a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros. Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido.” [2]
Por muito tempo, como sei que também outras pessoas, acreditei que a confissão acima fosse parte de uma poesia do escritor argentino Jorge Luis Borges. Depois de certo tempo, porém, ao ler um artigo sobre a autoria incerta da poesia, percebi claramente que o texto jamais poderia ter sido escrito por Borges, pois em nada o estilo se parece com o gênio argentino. Na verdade, a poesia não é de Borges, com certeza, e pode ser de uma escritora americana chamada Nadine Stair ou Nadine Stain, mas isto também é controverso. [3]
Inspirado nesta bela poesia, certamente, Sergio Brito, dos Titãs, compôs a música Epitáfio:“Devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer. Devia ter arriscado mais e até errado mais. Ter feito o que eu queria fazer. Queria ter aceitado as pessoas como elas são. Cada um sabe a alegria e a dor que traz no coração.” [4]
Outro grave equívoco com relação à autoria de poesias diz respeito ao caso daquele escrito que muitos panfletos revolucionários utilizaram como sendo de Brecht ou Maiakovski: “Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E já não podemos dizer nada”. Na verdade, esta poesia é de autoria do poeta brasileiro Eduardo Alves da Costa e o texto transcrito acima é apenas um trecho do belo poema. [5]
Pois bem, antes que simplesmente me aposente e lamente o tempo perdido, como confessa o autor no poema que serviu de mote para este texto, confesso que ingressei na magistratura da Bahia em dezembro de 1990, (quase 24 anos de labuta), passei por várias Comarcas, julguei milhares de processos, condenei, soltei, dei conselhos e esporros em partes e testemunhas, estudei pouco, segui muitos pareceres do Ministério Público com preguiça de pensar mais sobre o caso, fui extremamente legalista e positivista… Enfim, fui apenas mais um Juiz de Direito que acreditava realizar a justiça apenas com sua autoridade e a aplicação da lei.
Confesso, também, que somente agora, depois de tudo isso, sinto-me quase preparado para assumir a jurisdição da minha primeira Comarca (a pequena Urandi, no extremo sudoeste da Bahia) e fazer tudo melhor do que fiz. Assim, como diz a poesia que não é de Borges, “se eu pudesse viver novamente a minha vida…”
Não custa nada, no entanto, exercitar um pouco. Vamos lá.
Então, se eu pudesse viver novamente a minha vida de Juiz de Direito, não tentaria ser tão perfeito e legalista e procuraria julgar os casos muito mais procurando realizar a Justiça garantida no projeto constitucional brasileiro de construir uma sociedade livre justa e solidária, fundada na cidadania e dignidade da pessoa humana, do que aplicando cegamente leis e normas inferiores e, sobretudo, teria muito mais consciência de que não estava acima das pessoas e ser muito menos “autoridade” do que fui.
Se eu pudesse viver novamente a minha vida de Juiz de Direito, leria cada petição com muito mais cuidado e procuraria entender que, ao contrário do que me ensinou a dogmática, o mundo, a vida e os conflitos das pessoas estão nos autos e tentaria extrair desses autos as tragédias pessoais das partes de cada processo.
Diferente de interrogar, sob compromisso e penas da lei, eu procuraria conversar mais com as partes e testemunhas, buscando entender melhor o conflito em que se envolveram, as razões de cada um, as expectativas com relação ao judiciário. Enfim, estaria mais ocupado em entender o conflito e tentar mediá-lo do que perder tempo matutando uma “roupagem jurídica” para a decisão que já tinha em mente.
Não seria mais tão ávido por cumprir metas em números de sentenças, mas iria designar muito mais audiências para tentar mediar os conflitos e deixar que as partes dialogassem sobre o problema e buscassem uma solução.
Não seria mais tão iludido em imaginar que o Direito tivesse condições de resolver e julgar as tragédias humanas e não iria determinar tantas prisões de delinquentes comuns, “mulas” e “aviões do tráfico”. Agindo assim, talvez tivesse entendido bem antes que a “guerra às drogas” e o combate ao tráfico causa mais violência do que as próprias drogas.
Buscaria compreender as razões dos loucos e drogados e iria ouvi-los com paciência para entender um pouco mais sobre a mente humana, desejos, pulsões, recalques, inconsciente etc. Saberia, assim, que a psicanálise é fundamental para quem se arvora julgador de atos humanos que resultam na morte de outra pessoa.
Deixaria de “conceder”, como se estivesse dando o que não era meu, liminares ou liberdades provisórias, mas procuraria reconhecer presos como sujeito de direitos e lhe garantir esses direitos quando fossem detentores deles, ou seja, livrar-se da prisão não é uma concessão ou vontade do juiz, mas um direito de quem foi preso injustamente.
Enfim, se eu pudesse voltar a viver minha vida de juiz em minha primeira comarca, passearia muito mais de bermudas e sandálias nas praças da cidade, tomaria sorvete, andaria de bicicleta, conversaria mais com as pessoas, teria mais amigos, teria muito mais tempo para brincar com meus filhos, contemplaria mais amanheceres e entardeceres, seria muito mais pessoa humana do que autoridade… Se eu pudesse voltar a viver a minha vida de Juiz de Direito.
Não vou concluir como o autor da poesia (“Mas, já viram, tenho 85 anos e estou morrendo”), pois não penso sequer em me aposentar e sei que, depois de mais de 20 anos, sou quase como gostaria de ter sido, apesar de continuar aprendendo mais um pouco a cada dia. Neste aprendizado, jamais estarei pronto, tenho certeza, para assumir minha primeira Comarca com a sabedoria necessária. De outro lado, não me falta a certeza da loucura de acreditar que juntos, nós que sonhamos, podemos mudar a forma de ser Juiz de Direito e sua relação com os desvalidos do mundo, podemos construir um Direito para os que tem fome e sede de justiça e, sonhando mais ainda, podemos mudar o mundo.
Gerivaldo Neiva Juiz de Direito (Ba), membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD), membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros e Porta-Voz no Brasil do movimento Law Enforcement Against Prohibition (Leap-Brasil).