sexta-feira, 30 de maio de 2014

A POESIA DE GUERRA JUNQUEIRO...

CARIDADE E JUSTIÇA

Guerra Junqueiro

No topo do Calvário erguia-se uma cruz,
pregado sobre ela o corpo de Jesus.
Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas
corriam pelo ar como grandes manadas de búfalos.
E a lua ensangüentada e fria,
como um soluço imenso de Maria,
lançava sobre as coisas naturais
a merencória luz, cheia de brancos ais.
As árvores que outrora, em dias de calor,
abrigaram Jesus, cheias de mágoa e dor,
choravam na mudez hercúlea dos heróis,
deixaram de cantar todos os rouxinóis.
Num momento em que havia grande escuridão,
Cristo sentiu alguém se aproximar. Então, olhou
e viu surgir no horror das trevas mudas
o covarde perfil sacrílego de Judas.
O traidor contemplando o olhar do Nazareno,
tão cheio de desdém, tão nobre e tão sereno,
convulso de terror, fugiu.
Mas nesse instante surgiu-lhe frente a frente um
vulto de gigante que bradou :- É chegado enfim
o teu castigo !
O traidor teve medo e balbuciou :
- O que pretendes de mim ? Quem és tu ?
- O Remorso. O grande caçador de feras ...
Judas Iscariotes, como um negro que vê
a ponta dum chicote, tremia.
Levando a mão à bolsa, tirou o saco de
dinheiro, dizendo: - Aqui tens. Deixa-me partir.
O gigante o fitou e começou a rir.
Finalmente o vulto respondeu :
- Guarda esse dinheiro. É teu.
- O ouro da traição pertence ao traidor,
como o riso à inocência, e como o aroma à flor.
- És traidor, assassino, hipócrita e perjuro.
- A tua alma lançada em cima de um monturo
faria nódoa. És livre. Adeus.
- Já brilha o astro matutino e eu caçador
feroz, cumprindo o meu destino,
continuarei procurando os javalis nos matos.
E, dito isso, partiu a procurar Pilatos.
Judas ficando só, meteu-se pela estrada
caminhando ligeiro, impávido e terrível,
como um homem que leva um fim indescritível.
De-repente estacou. Havia uma figueira.
Judas desenrolou a corda da cintura,
subiu acima, atou-a num ramo vigoroso
e deu um laço na garganta.
Nisto ouviu a voz de Jesus moribundo,
que lhe disse: - Traidor, concedo-te o perdão,
apesar de meu carrasco, és ainda meu irmão.
Pregaste-me na cruz, mas é o mesmo. Fica em paz,
eu costumo esquecer o mal que alguém me faz.
- Tenho até prazer, bem vês, no sacrifício.
Não te cause remorso o meu atroz suplício.
Esses golpes cruéis; essas horríveis dores
e as minhas chagas são outras tantas flores .
Judas fitou ao longe os cerros do Calvário,
erguendo-se, viril, soberbo, extraordinário,
exclamou : - Não aceito a tua compaixão.
A justiça dos bons consiste no perdão.
- Um justo não perdoa. A justiça é implacável.
- A minha ação é infame, hedionda, miserável.
- Preguei-te nesta cruz; vendi-te aos fariseus.
- Pois bem, sendo eu um monstro e sendo tu um Deus,
vais ver como este monstro oh, pobre Cristo nu,
é mais justo do que Deus e mais forte do que tu.
- À tua caridade humanitária e doce, prefiro
o dever terrível... E enforcou-se.

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