sonho o poema de arquitetura ideal
cuja própria nata de cimento encaixa palavra por
palavra,
tornei-me perito em extrair faíscas das britas
e leite das pedras.
acordo.
e o poema todo se esfarrapa, fiapo por fiapo.
acordo.
o prédio, pedra e cal, esvoaça
como um leve papel solto à mercê do vento
e evola-se, cinza de um corpo esvaído
de qualquer sentido.
acordo,
e o poema-miragem se desfaz
desconstruído como se nunca houvera sido.
acordo!
os olhos chumbados
pelo mingau das almas e os ouvidos moucos,
assim é que saio dos sucessivos sonos:
vão-se os anéis de fumo de ópio
e ficam-se os dedos estarrecidos.
sinédoques, catacreses,
metonímias, aliterações, metáforas, oxímoros
sumidos no sorvedouro.
não deve adiantar grande coisa
permanecer à espreita no topo fantasma
da torre de vigia.
nem a simulação de se afundar no sono.
nem dormir deveras.
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará o recalcado?
(mas eu figuro meu vulto
caminhando até a escrivaninha
e abrindo o caderno de rascunho
onde já se encontra escrito
que a palavra "recalcado" é uma expressão
por demais definida, de sintomatologia cerrada:
assim numa operação de supressão mágica
vou rasurá-la daqui do poema)
pois a questão-chave é:
sob que máscara retornará?
Waly Dias Salomão (Jequié, Bahia, 1943 - Rio de Janeiro 2003). Foi poeta e letrista de música. Conhecido por sua efervescência natural, imprimiu forte marca na cultura brasileira em diversas áreas. Waly é autor grandes canções da música popular brasileira, com especial devoção para Vapor Barato, em parceria com Jards Macalé. Waly trabalhou no Ministério da Cultura com Gilbeto Gil. Queria que o livro fosse incluido na cesta básica. Com o livro Algaravias, ganhou o Prêmio Jabuti em 1997. Amigo de Hélio Oiticica, Torquato Neto e outros, foi militante nos anos 70 e poeta "marginal".
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