terça-feira, 5 de novembro de 2013

UMA PROSA POÉTICA...

Segues para velhice tão contente, Como se caminhasses para um trono. A tua alma, como um solar sem dono, Vive de sonhos no teu corpo doente.
Ah! Bem sabes que o sol está no poente, Que o roseiral murchece no abandono... Que importa a primavera? Veio o outono Bendizer-te as tristezas de vidente.
Cerra os olhos suavíssimos e mira Os dias que se foram, no letargo Que de ti se aproxima em vãos lentos... 
Feliz de quem na paz eterna expira... Solta as velas à nave. Eis o mar largo. Eis a bonança. Levem-te bons ventos!
Alphonsus de Guimaraens
“Soneto XLIV”

Nossas vidas e seus referenciais. Desde os primeiros brinquedos, soldados de chumbo ou mal acabados carros de madeira, até os dias em que assistimos o princípio da última e grande viagem dentro do tempo, já fora das nossas vidas. Apenas uma dor que maltrata nossos espíritos, num melancólico mergulho que parece não findar. Nossas vidas e suas vertentes orientadas por incontáveis pontos cardeais. A primeira namorada que se nos afigura paixão irreversível, mas que acaba como chuva de verão, apagando da memória o próprio nome, tal castelo de areia que não resiste à água. Os antigos companheiros da infância, ainda vivos, cujos caminhos ignoramos. Nada sabemos das tragédias que os alcançaram, porque decidiram habitar no país do silêncio.
Nossas vidas e a casa como referencial mais importante, sobretudo quando vemos subir suas paredes e nela permanecemos mais de 50 anos. Integramo-nos para ser parte da estrutura, prolongamento da argamassa que nos envelhece, fantasmas do jardim e dos oitões, sombras desgovernadas transitando fictícios corredores de quartos, salas e salões. A casa e seus ventos outonais, fustigando portas e janelas ou chegando pelas venezianas para varrer a quietude do ambiente. A casa, a rua, no começo um grande vazio demarcado, grama e terra misturadas pela mão de Deus, um vizinho aqui, outro acolá. No final, doente, nas paredes, marcadas pelos indefectíveis riscos das goteiras, no teto, permeável infectado de cupins e nos espaços solitários, desaparecidos até o arrastar marcante dos chinelos. A casa e seus personagens corpos de nossas vidas, permanentes ou transitórios, rastros fixados numa saudade indelével, sentindo cheiro adocicado dos sapotis que pendiam dos galhos sobre os muros, espreitados pelos cães, atentos aos ruídos dos portões habitualmente disponíveis. A casa, ilha abandonada.
Ítaca submersa num oceano de sonhos. Sem gente, móveis, roupas, livros. Pálido espelho, cuja superfície fraturada reflete deformadas sombras e ausências.

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