ENVELHECIMENTO DOS TECIDOS
Ferreira Gullar, o poeta que trocou de nome
“Agora, sim! Vamos morrer reunidos, / Tamarindo de minha desventura. / Tu, com o envelhecimento da nervura, / Eu, com o envelhecimento dos tecidos!”
O quarteto inicial do soneto Vozes da Morte, do mestre Augusto dos Anjos, martela minha memória desde as primeiras horas desta manhã de sexta-feira. Nada de especial está acontecendo, ou por acontecer, acredito, embora ontem, os poetas tenham comemorado o nascimento de Castro Alves e o dia Nacional da Poesia.
Então lembro de poetas, uma grande maneira de esquecer toda urgência em que vivemos mergulhados.
Estávamos numa varanda, olhando uma parte da Baia da Guanabara, com os barcos do Iate Clube marcando o mar e o sol da tarde carioca desenhando cores no ar. Falávamos de gerações literárias, essas ondas vivas que periodicamente se alevantam para apagar a estética do ano anterior. “Começamos numa geração para terminarmos na solidão”, sentenciou meu amigo Lêdo Ivo, mentalmente fazendo seu inventário de perdas. Todos da Geração 45 já dormiam profundamente e restava apenas ele num apartamento recheado de livros e obras de arte.
Agora Lêdo também dorme. E a geração é mais solitária do que nunca. Fez sua revolução e reverberou uma volta ao formalismo, mas uma volta despida da estética parnasiana. Uma poesia chão a chão, falando de homens e mulheres, jogando no limbo sátiros e ninfas. E isso impregnou um outro poeta, Ferreira Gullar.
Ele conta que, chegando do Maranhão prenhe dos conceitos modernistas e com os bolsos vazios de lirismos, tomou um susto quando encontro métricas e rimas pululando nas ruas do Rio de Janeiro, a capital política e cultural. Era início da década de 1950.
Tal susto tinha suas razões. Até hoje, em rodas de conversa, Gullar gosta de contar o que era São Luís do Maranhão na década de 1940. Havia mais de um poeta para cada esquina. Aliás, segunda assevera Marcos Vinícios Vilaça, “todo maranhense quer ser poeta, e se você disser que o cidadão não é poeta, o está matando de frustração.” Pois bem, neste ambiente havia dois grupos bem definidos. Um cultuava a poesia tradicional, a rima, a métrica, se aproximando do condorismo de Castro Alves e se encastelando no Grêmio Literário Gonçalves Dias. O outro grupo se reunia na Movelaria Brasil e, claro, era conhecido como Movelaria. Defendia o fim do lirismo e o verso livre, tinha à frente o poeta Bandeira Tribuzi que, indo estudar em Coimbra, voltou sem diploma, mas com as malas abarrotadas das obras de Fernando Pessoa, Mário de Sá Carneiro e todos os outros modernistas portugueses.
Ferreira Gullar era do Grêmio Gonçalves Dias e José Sarney da Movelaria. Tempos estranhos aqueles, onde Gullar era arcaico e Sarney moderno. É certo que o hoje vetusto senador pelo Amapá bem que tentou se filiar ao grêmio e foi rejeitado. Ele nega o fato, mas não pode fugir de outra verdade. Em 1952, aos 22 anos, entrou para a Academia Maranhense de Letras, como desagravo à rejeição, mesmo sem ter ainda escrito livro algum. O primeiro, um estudo antropológico sobre a pesca de curral, somente foi lançado no ano seguinte.
Assim caminhavam os maranhenses, e numa confusão tamanha que obrigou Ferreira a trocar de nome. Seus textos iniciais eram assinados por Ribamar Ferreira, mas havia também um péssimo poeta chamado Ribamar Pereira. Certa feita um jornal publicou um horrendo artigo do Pereira e creditou ao Ferreira, que resolveu adotar o Gullar da mãe que também não se grafava dessa maneira original.
E foi já como Ferreira Gullar que em 1949 publicou seu primeiro livro, Um Pouco Acima do Chão, que ele agora rejeita. Não creio que haja muita razão para isso. O livro é derramadamente lírico, irregular em alguns pontos, mas já demonstra o grande poeta, o poeta que deixa que a poesia nasça do espanto, da necessidade de expressar sentimentos sinceros. E isso vai de encontro à poética de Sarney que começa a se mostrar em 1954 com A Canção Inicial, uma reunião de poemas de versos livres de qualidade baixa. Tem até um poema para o Capibaribe que, sinceramente, não merece homenagem tão medíocre.
Naqueles anos 50 chegaram ao Rio de Janeiro, Gullar como poeta, jornalista e homem de pensamento moderno, Sarney como suplente de deputado federal que assumia no lugar do titular, meio esquecido da poesia e já na linha de frente da chamada Banda de Música da UDN, que reunia uma juventude reacionária.
Entre revoluções literárias e políticas as décadas brasileiras se consolidaram. Ferreira escreveu marcos –Poema Sujo, Dentro da Noite Veloz – e foi exilado por sofrer com a injustiça. Sarney cometeu alguns encantos, como Saraminda e Norte das Águas, mas também nos maculou com versos medíocres e uma política rasteira.
Com o tempo a modernidade trocou de lugar. Ou seja, a trajetória dos maranhenses, cultuando suas solidões, desde sempre seguiram caminhos bem distanciados.
E tudo deu no que deu. Gullar se renova e rejuvenesce na chegança inexorável dos anos, enquanto Sarney, no envelhecimento também dos tecidos,…
E viva a poesia, um instrumento de proteção à vida, a boa ou a má
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