POR LEONARDO DANTAS.
O MULATO NA SOCIEDADE
Mulato – Eckhout
Passados quinhentos anos de sua descoberta pelos portugueses, o Brasil apresenta-se com um biótipo próprio de sua gente, que em nada se parece com o português colonizador, o índio que já habitava a terra e o negro trazido da África como escravo para aqui construir o país-continente dos nossos dias.
O brasileiro, como bem afirma Darci Ribeiro, tem a cara do povo brasileiro; ele não se parece nem com o português, nem com o índio, nem muito menos com o negro. Trata-se de um povo de identidade própria.
Na verdade, somos um povo de mestiços, formado pelo cruzamento de várias raças, com influência de levas de colonizadores diversos, chegados em diferentes épocas, que transformaram o Brasil num país, com valores, usos e costumes diversos de quaisquer outros povos.
JERÔNIMO, O ADÃO PERNAMBUCANO
A mestiçagem de nossa gente, já registrada por Joaquim Nabuco, quando da publicação de O Abolicionismo(Londres: 1883) – “Nós não somos um povo exclusivamente branco, e não devemos, portanto, admitir essa maldição da cor; pelo contrário, devemos tudo fazer para esquecê-la”:
No Brasil, ao contrário: a escravidão ainda que fundada sobre a diferença das duas raças, nunca desenvolveu a prevenção da cor, e nisso foi infinitamente mais hábil. Os contatos entre aquelas, desde a colonização primitiva dos donatários até hoje, produziram uma população mestiça, como já vimos, e os escravos ao receberem a sua carta de alforria, recebiam também a investidura de cidadão. Não há assim entre nós castas sociais perpétuas, não há mesmo divisão fixa de classes. O escravo, que como tal praticamente não existe para a sociedade, [...] é no dia seguinte à sua alforria um cidadão como outro qualquer, com todos os direitos políticos, e o mesmo grau de elegibilidade. Pode mesmo, ainda na penumbra do cativeiro, comprar escravos, talvez mesmo quem sabe? – algum filho do seu antigo senhor. Isso prova a confusão de classes e indivíduos , e a extensão ilimitada dos cruzamentos sociais entre escravos e livres, que fazem da maioria dos cidadãos brasileiros, se se pode assim dizer, mestiços políticos, nos quais se combatem as duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento e a do escravo domesticado.(¹)
Em Pernambuco, um aspecto que marcou a Civilização do Açúcar foi à mestiçagem que logo tomou conta da sociedade, encorajada pelo primeiro donatário como se depreende das cartas jesuíticas, denunciando a indiscriminada atividade sexual dos portugueses com os nativos; o que faz Francis Dutra concluir que “desde o filho mais novo do primeiro donatário aos mais insignificante degredado, os portugueses foram pais de gerações de mestiços”.
Em depoimento prestado perante o inquisidor Heitor Furtado de Mendoça (sic.), datado de Olinda, 15 de novembro de 1593, Manuel Álvares, um criado de Dona Brites d’ Albuquerque, faz referência a “Manoel d’ Oliveira, mameluco que dizem ser filho bastardo de Jorge de Albuquerque e de uma índia mestiça deste Brasil”.(²)
Somente Jerônimo de Albuquerque (O Torto), cunhado do primeiro donatário, em seu testamento, firmado em Olinda, em 13 de novembro de 1584, reconhece como filhos onze concebidos de sua mulher legítima, Filipa de Melo; oito com a índia Maria do Espírito Santo; cinco com outras mulheres, uma das quais Apolônia pequena, mãe do seu filho Felipe de Albuquerque, citado expressamente no testamento; deixando dúvidas ainda sobre uma filha tida com uma de suas escrava, de nome Maria, e de uma outra, Jerônima, “que se criara em sua casa e que foi tida por sua filha, mas que Deus sabia a verdade do ocorrido”.
Dos oito filhos com a índia, Maria do Espírito Santo, posteriormente legitimados pela Coroa, os dois mais notáveis foram Catarina de Albuquerque, que se casou com o florentino Felipe Cavalcanti, fundador do clã Cavalcanti de Albuquerque, e Jerônimo de Albuquerque que conquistou a fama quando expulsão dos franceses do Maranhão no início do século XVII.
Da descendência de Jerônimo de Albuquerque originaram-se algumas das mais tradicionais famílias pernambucanas, como Cavalcanti Albuquerque, Fragoso de Albuquerque, Albuquerque Maranhão, Siqueira Cavalcanti, Pessoa de Albuquerque, dentre outras, justificando assim o apelido de Adão Pernambucano , dado no decorrer dos séculos ao seu patriarca.(³)
Como bem dizia na época Caspar van Baerle, “não existe pecado do lado de baixo do Equador” e, nos nossos dias, Chico Buarque de Holanda acrescentou: “vamos fazer um pecado, rasgado, suado, a todo vapor…”.
PRESENÇA HOLANDESA
A essa mistura de raças, acrescente-se a contribuição dos que para aqui se transferiram quando da Dominação Holandesa (1630-1654), estabelecendo-se com suas famílias e/ou casando-se com mulheres da terra ou portuguesas. Eram holandeses, franceses, flamengos, italianos, belgas, alemães e uma infinidade de judeus, oriundos da Península Ibérica e do Norte da Europa, que para aqui vieram e deixaram os seus descendentes, lembranças ainda hoje presentes em tipos alvos, de cabelos louros e olhos claros, encontrados em comunidades do nosso interior.
Demonstra José Antônio Gonsalves de Mello ser tais uniões bastante freqüentes a ponto do artigo 5º da versão holandesa do documento de capitulação, assinado em 26 de janeiro de 1654, expressar: “consentia aos vassalos dos ditos Senhores Estados Gerais casados com mulheres portuguesas ou nascidas na terra, que fossem tratados como se fossem casados com holandesas”.
Uma testemunha da época, procurador da Coroa e Fazenda Real, Antônio da Silva e Souza, assegura que “concedeu-se aos flamengos que quisessem ficar logrando suas fazendas as terão assim como as tinham de antes e como se foram portugueses, gozando de todos os privilégios que eles gozam”. – E não foram poucos os que ficaram, visto estarem unidos a mulheres da terra, com famílias e propriedades estabelecidas.(4)
Escrevendo sobre esse período do século XVII, Gilberto Freyre diz que
Nesse Recife que se diferenciou tanto das outras cidades da colônia pelo seu gênero de vida e pela sua população desigual de neerlandeses, franceses, alemães, judeus, católicos, protestantes, negros e caboclos, não só se falaram por trinta anos, quase todas as línguas vivas da Europa e várias da África, como estudou-se e escreveu-se nas sinagogas um hebreu diverso do manchado e gasto pela boca dos askenazim: o velho e aristocrático hebreu guardado em toda sua pureza pelos rabinos de barba preta e olhos tristes que a Congregação de Amsterdam mandara para Pernambuco.(5)
Lembra o mesmo autor, citado por Gonsalves de Mello em artigo publicado no Diario de Pernambuco de 12 de maio de 1988, que “o preconceito de raça entre os brasileiros foi sempre, e continua a ser, mínimo quando comparado com as formas que se apresentam entre povos europeus e da América do Norte”.
O ACIDENTE DA COR
O acidente da cor, como designava os portugueses as pessoas não brancas, não era motivo bastante para a discriminação de qualquer espécie. Opina José Antônio Gonsalves de Mello, que a Coroa Portuguesa, quando provocada, sempre se manifestou contrária a qualquer comportamento discriminatório para com os negros ou mestiços, relacionando para isso uma série de fatos comprobatórios.
Assim aconteceu com “os moços pardos da Bahia” que, segundo padre Serafim Leite, depois de lhes serem negada matrícula no colégio dos jesuítas de Salvador, em 1688, recorreram para o Rei e este, depois de advertir o provincial da Companhia de Jesus na Bahia, determinou a matrícula dos reclamantes, a exemplo do que já acontecia nas escolas de Coimbra e Évora.
Em outra ocasião, o Rei de Portugal determinou, em carta de 7 de outubro de 1700 dirigida à Câmara Municipal de Olinda, que a Ordem de São Bento e mais tarde os padres Terésios, bem como outras ordens religiosas sediadas em Pernambuco, recebessem os mestiços, filhos dos moradores da terra, em seus conventos.
No âmbito dos franciscanos há o exemplo, comovente, daquele antigo soldado do Terço de Henrique Dias que, após a vitória sobre as tropas holandesas, resolveu recolher-se ao convento de Nossa Senhora das Neves de Olinda. Conta frei Jaboatão, em seu Novo Orbe Seráfico Brasílico (Rio: IHGB, 1858), que “depois de muitos anos no convento, vendo que não o admitiam ao sacerdócio, a que tanto aspirava, viajou a Lisboa a queixar-se ao rei de Portugal, D. Pedro II, conhecido como um amante inveterado de mulheres “da mais baixa condição e em grande número de diferentes cores”, o qual atendendo às boas informações que teve do reclamante, ordenou que o admitissem à profissão, o que finalmente se fez no seu convento olindense a 2 de agosto de 1689, “quando já contava com 80 anos de idade”, vindo a falecer “com opinião universal de virtude e fama de santidade a 25 de agosto de 1695”.
Exemplo significativo de preconceito racial de um governador de Pernambuco é o de Duarte Sodré Pereira, que se recusou dar posse no cargo de procurador da Coroa ao bacharel formado em Coimbra Antônio Ferreira de Castro, pelo fato deste ser mulato. O rei em carta de 9 de maio de 1731 repreendeu o governador “tendo entendido que se não tivestes justa razão, porquanto o defeito que dizeis haver no dito provido, por ser pardo, lhe não obsta para esse ministério”.
No meio militar há dois casos dignos de serem referidos. O primeiro é o do soldado do regimento dos Henriques do Recife, Manuel Pereira de Melo, “homem preto e livre”. Em memorial ao rei em 1700, queixou-se de que servia na tropa há 27 anos, sempre como soldado, tendo participado das lutas contra indígenas rebelados, mas ao longo desse tempo nunca tinha tido uma promoção e pedia que lhe fosse dado um posto de capitão no seu regimento. O rei ordenou que o governador de Pernambuco o provesse em uma das patentes vagas, que ele pudesse preencher a contento.
O outro caso é o relativo ao Mestre de Campo do regimento dos Henriques, Domingos Rodrigues Carneiro. Escreveu ele ao rei, em 1702, que os soldados brancos de guarda nos quartéis, quando ele passava por tais lugares, não lhe faziam a cortesia de pegar em armas, como deviam por sua patente militar, isto é, deixavam de fazer a saudação que era devida. A determinação régia foi que “os soldados que servirem de sentinela no corpo de guarda tomem as armas do Mestre de Campo Domingos Rodrigues Carneiro, por esse estilo praticado, segundo as regras militares”.(6)
Quando das guerras contra a Holanda, no século XVII, o acidente da cor não veio impedir que o mulato João Fernandes Vieira, o índio Antônio Felipe Camarão e o negro Henrique Dias recebessem, em épocas distintas, a comenda do Hábito da Ordem de Cristo, a mais cobiçada honraria outorgada pela coroa portuguesa aos seus fidalgos.
CIDADÃO BRASILEIRO
E dentro da permissividade que marcou a nossa sociedade colonial surgiram vários tipos de raças cruzadas: mestiços de branco com índio, o caboclo ou mameluco; e o nosso mestiço por excelência, o mulato, para quem Gilberto Freyre dedica os capítulos finais do seu livro Sobrados e mucambos. Surge ele do cruzamento de branco com negro, ou, como ensina George Marcgravi, “natus ex patre europeo et matre ethiopissa dicitur mulato”.(7)
O século XVIII, chamado de “o século das luzes”, veio transformar radicalmente o panorama humano das cidades brasileiras. Transformação não somente no âmbito das novidades aqui chegadas após “a abertura dos portos a todas as nações amigas”, a partir de 1808, mas sobretudo no âmbito das idéias, com a proliferação dos doutores e bacharéis formados, inicialmente, por Coimbra, Montpellier, Paris, Inglaterra e Alemanha, e posteriormente pelos cursos de direito do Recife e São Paulo, medicina da Bahia e Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Foram eles os indutores das novas idéias liberais, postas em prática em 1817 e 1824 em Pernambuco, que vieram despertar a consciência nacional para o valor do mestiço nacional e emancipação do elemento escravo, bem como da sua importância na formação do produto nacional bruto.
Gilberto Freyre, em Sobrados e Mucambos, chama a atenção para os versos de Alvarenga Peixoto, inconfidente nascido em c de 1744 e falecido em Angola em 1793, que, já no século XVIII, faz exaltação em forma poética ao trabalho manual e, conseqüentemente, ao mestiço operário:
[...] homens de vários acidentes
pardos, pretos, tintos e tostados.
[...] os fortes braços feitos ao trabalho.
pardos, pretos, tintos e tostados.
[...] os fortes braços feitos ao trabalho.
No âmbito da população, as figuras do mameluco e do mulato vieram conquistar posições de relevância, principalmente quando se tornavam detentores de um título de doutor ou bacharel, ou ainda de uma patente do nosso exército; segundo bem observa Gilberto Freyre:
Às vezes eram rapazes de burguesia mais nova das cidades que se bacharelavam na Europa. Filhos e netos de “mascates”. Valorizados pela educação européia, voltavam socialmente iguais aos filhos das mais velhas e poderosas famílias de senhores de terra. Do mesmo modo que iguais a estes, muitas vezes seus superiores pela melhor assimilação de valores europeus e pelo encanto particular, aos olhos do outro sexo, que o híbrido, quando eugênico, parece possuir como nenhum indivíduo de raça pura, voltavam os mestiços ou os mulatos claros.
A ascensão do bacharel mestiço se fez rapidamente na sociedade brasileira, particularmente após 1827 com a criação dos cursos jurídicos de Olinda e São Paulo. Através do casamento com mulheres de famílias ricas e poderosas, vários deles ascenderam aos mais altos escalões do Império, como o nosso João Alfredo Correia de Oliveira, segundo Gilberto Freyre, um descendente “de linda e agreste ameríndia que, na meninice, ganhara o apelido de Maria Salta Riacho. Apenas o neto da índia agreste tornou-se Ministro do Império aos vinte e tantos anos”.
O mestiço de negros, por sua vez, foi mais prolífero, em que pese o “preconceito de branquidade, de sangue limpo”, retratados de forma humana pelo maranhense Aluísio de Azevedo (1857-1913) no seu romance O Mulato (1881), tornando-se mais presente na sociedade do século XIX. Nomes como José da Natividade Saldanha, Antônio Pedro de Figueiredo, Antônio Gonçalves Dias, Antônio de Castro Alves, André Rebouças, Tobias Barreto e centenas de outros servem de exemplo da influência do mulato na sociedade brasileira do século XIX.
O acidente da cor, do período colonial, foi cedendo lugar ao conceito de branquidade em razão do cargo, lembrando Gilberto Freyre, a propósito de um fato narrado pelo inglês radicado em Pernambuco, Henry Koster, in autor do livro Travels in Brazil, Londres (1816), traduzido por Luís da Câmara Cascudo, Viagens ao Nordeste do Brasil (1941).
Observava Henry Koster, a propósito da condição do mulato na sociedade de então, que se os papéis de um desses indivíduos o tiver como branco, “embora o seu todo demonstre plenamente o contrário”, ele pode ser nomeado para as ordens religiosas ou para a magistratura:
Conversando numa ocasião com um homem de cor que estava ao meu serviço, perguntei-lhe se certo Capitão-Mor era mulato. Respondeu-me: Era, porém já não é! E como lhe pedisse explicação, concluiu: – Pois Senhor, um Capitão-Mor pode ser Mulato?(8)
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