Memórias do boi Serapião
Este campo,
vasto e cinzento,
não tem começo nem fim,
nem de leve desconfia
das coisas que vão em mim,
Deve conhecer, apenas
(porque são pecados nossos)
o pó que cega meus olhos
e a sede que rói meus ossos.
No verão, quando não há
capim na terra
e milho no paiol
solenemente mastigo
areias, pedras e sol.
Às vezes, nas longas tardes
do quieto mês de dezembro
vou a uma serra que eu sei
e as coisas da infância lembro:
instante azul em meus olhos
vazios de luz e fé
contemplando a festa rude
que a infância dos bichos é.
No lugar onde eu nasci
havia um rio ligeiro
e um campo verde e mais verde
de um janeiro a outro janeiro
havia um homem deitado
na rede azul do terraço
e as filhas dentro do rio
diminuindo o mormaço.
Não tinha as coisas daqui:
homens secos e compridos
e estas mulheres que guardam
o sol na cor dos vestidos
nem estas crianças feitas
de farinha e jerimum
e a grande sede que mora
no abismo de cada um.
Havia este céu de sempre
e, além disto, pouco mais
que as ondas nas superfícies
dos verdes canaviais.
Mas, os homens que moravam
na língua do litoral
falavam se desmanchando
das terras gordas e grossas
daquele canavial
e raras vezes guardavam
suas lembranças mofinas
as fumaças que sujavam
os claros céus que cobriam
as chaminés das usinas.
As vezes, entre iguarias,
um comentário isolado:
a crônica triste e curta
de um engenho assassinado.
Mas logo à mesa voltavam
que a fome bem pouco espera
e os seus olhos descansavam
em porcelanas da China
e cristais da Baviera.
Naquelas terras da mata
bem poucos amigos fiz,
ou porque não me quiseram
ou então porque eu não quis.
Lembro apenas um boi triste
num lençol de margaridas
que era o encanto do menino
que alegre o tangia para
as colinas coloridas.
Um dia. naquelas terras
foi encontrado um boi morto
e os outros logo disseram
que o seu dono era o homem torto
que em vez de contar as coisas
daqueles canaviais
vivia de mexericos
“entre estas Índias de leste e as Índias Ocidentais”.
A verde flora da mata
(que é azul por ser da infância)
habita os meus olhos com
serenidade e constância.
Este campo,
vasto e cinzento,
é onde às vezes me escondo
e envolto nestas lembranças
durmo o meu sono redondo,
que o que há de bom por aqui
na terra do não chover
é que não se espera a morte
pois se está sempre a morrer:
em cada poço que seca
em cada árvore morta
em cada sol que penetra
na frincha de cada porta
em cada passo avançado
no leito de cada rio
por todo tempo em que fica
despido, seco, vazio.
Quando o sol doer nas coisas
da terra e no céu azul
e os homens forem em busca
dos verdes mares do sul,
só eu ficarei aqui
para morrer por completo,
para dar a carne à terra
e ao sol meu branco esqueleto,
nem ao menos tentarei
voltar ao canavial,
pra depois me dividir
entre a fábrica de couro
e o terrível matadouro
municipal.
E pensar que já houve um tempo
em que estes homens compridos
falavam de nós assim:
o meu boi morreu,
que será de mim?
Este campo,
vasto e cinzento,
não tem entrar nem sair
e nem de longe imagina
as coisas que estão por vir,
e enquanto o tempo não vem
nem chega o milho ao paiol
solenemente mastigo
areia, pedras e sol.
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