domingo, 23 de março de 2014

UMA CARTA HISTÓRICA...UMA PEÇA LITERÁRIA...

PRIMEIRA CARTA de MONS. WALFREDO DANTAS GURGEL para sua mãe, MÃE QUININHA, logo depois de sua ORDENAÇÃO PRESBITERAL:

Roma, 2 de Novembro de 1931.

Querida mamãe....


Até hoje, em minhas cartas, começava pedindo a vossa bênção materna; hoje, porém, sinto o dever sagrado de começar esta abençoando-vos com a minha bênção sacerdotal.

Eu bem sei com quanta ânsia esperais a minha primeira carta, escrita com as mãos ungidas pelo óleo santo. E, talvez, eu mesmo já devesse de ter escrito. Queria, porém, sentir todas as comoções destes dias de paraíso, para depois comunicar-vos todas, descrevendo tudo como foi, contando tudo que senti.

Sou sacerdote! Com quanta alegria, com que júbilo imenso não vos dou esta notícia. Quis o Senhor, com sua misericórdia infinita, conceder-me esta graça ingente, apesar de minha indignidade, apesar de meus pecados. Ser sacerdote! Não teve esta dita o próprio pai adotivo de Jesus Cristo – São José. Não o foram os próprios anjos do Paraíso, imaculados e puros, criados pela Onipotência Divina para cantarem sempre louvores à Divindade, adorando-a sempre.

E o que não foi São José, não o foram os anjos celestes, sou eu agora. Inclino-me na humildade da prece e adoro a misericórdia de meu Deus. Nada invejo sobre a terra. A coroa dos príncipes, o cetro dos imperadores, a toga dos magistrados, não valem a menor alegria, a mínima doçura do sacerdócio católico. O poder dos grandes da terra não atinge o âmbito do espírito; o poder sacerdotal ultrapassa os limites desta vida para influir na eternidade do homem.

A minha ordenação sacerdotal começou de manhã, às 07h30, prolongando-se quase até ao meio dia. Ordenou-nos o Mons. Palica, que fez tudo muito bem. Éramos 27 deste Colégio e mais 10 de fora. Ao todo 37 sacerdotes. Nunca me senti tão feliz em minha existência. Não pensava mesmo comover-me tanto. Lembrei-me muito de vós e não podia impedir que as lágrimas me saíssem do coração e deslizassem pelas faces. Eu bem sabia que estáveis seguindo com toda alma, mesmo de longe, o desenrolar daqueles cerimônias, que estáveis rezando por mim, por vosso filho, mas ambicionava ver-vos ali a meu lado, vendo a minha comoção e a minha alegria. Mas assim não o quis o Senhor. Que se faça sempre a sua vontade divina!

O ponto culminante para mim foi quando o Senhor Bispo ungia-nos as mãos ao som do “Veni Creator”, executado pela Schola Cantorum. Quase todos chorávamos porque estávamos nas mesmas condições, ausentes de nossas queridas mães, dos queridos irmãos, que naqueles instantes pensavam em nós. Pedi perdão de meus pecados ao Senhor, senti-me profundamente indigno e implorei o auxílio materno da Virgem Imaculada para ser sempre fiel, até à morte, ao meu sacerdócio. À Virgem Imaculada, que nos sorria docemente do altar, consagrei meu sacerdócio, pedindo a pureza e santidade que requer a vida sacerdotal.

Quando já estava ordenado, quando já havia recebido o altíssimo poder de transubstanciar o pão e o vinho no corpo e no sangue adoráveis de Jesus Cristo, um companheiro foi ao telégrafo para mandar-vos a vós, aos irmãos, aos parentes e aos amigos de Caicó a minha primeira bênção sacerdotal. Penso que, no mesmo dia, havíeis recebido o telegrama. Era um sinal de que naquele dia o pensamento meu estava convosco, de que queria dividir convosco as minhas santas e puras alegrias.

Terminada a ordenação, todos os companheiros queriam a nossa bênção, ajoelhados aos nossos pés de néo-sacerdotes do Senhor. Queriam oscular as nossas mãos consagradas, perfumadas ainda com o óleo santo. Queriam dar-nos o abraço fraternal e amigo, em substituição dos abraços dos irmãos e amigos distantes. Passei o dia com eles, numa alegria santa, como se estivesse entre os meus. Todos somos irmãos e amigos. Por isso, a alegria era comum, era de todos. Pelas fotografias que com esta seguirão e pelas outras que dentro em pouco enviar-vos-ei, podeis ver o sorriso de corações felizes.

Na noite anterior à ordenação não dormi um só minuto, pensando nela. Assim, pude ver o despontar da brilhante aurora do mais feliz, do mais belo dia de minha vida.

No dia seguinte (26), celebrei a minha primeira missa na Igreja de São Joaquim, no altar de Nossa Senhora Aparecida, rainha e Mãe do povo brasileiro. Era a primeira vez que, em minhas mãos, o pão e o vinho se transformavam milagrosamente no corpo e no sangue de Cristo – Deus e Homem. Quantos atos de fé, de amor e de humildade! Só Deus os sabe. Celebrei-a às 07h30 da manhã. Ofereci-a em ação de graças pelo grande benefício que me concedeu o Senhor, fazendo-me sacerdote. Rezei por quase todo o mundo. As primeiras pessoas que me vieram à mente no “memento” fostes vós, no dos vivos, e papai, no dos defuntos. Celebrei com a casula, que é belíssima, e com o cálice que é a lembrança do querido tio Joel. O Dr. Luís Gurgel assistiu-lhe a ela e foi padrinho de primeira missa. Havia, porém, umas quarenta pessoas presentes. Uma senhoras choravam de comoção, principalmente durante o beija-mãos. Os padres Redentoristas, que cuidam da Igreja, foram sumamente amáveis. Enfeitaram toda a capelinha da Aparecida, puseram cadeiras de luxo para os convidados e me atenderam com toda consideração. Fiquei-lhes muito agradecido. O presbítero assistente de minha primeira missa foi um padre alemão, professor da Universidade. É o padre Henrique Lennerz. Os acólitos, os companheiros e amigos Ernesto Flores, equatoriano, e João Gutierrez, uruguaio. Foram outros alunos para assistirem à solenidade.

Depois de haver celebrado e dado ação de graças, tomamos café mesmo na casa dos redentoristas. O trabalho estava a cargo de uma confeitaria, saindo tudo muito bem. O Dr. Luís, que me estima bastante, deu-me o prazer de tomar comigo o café. Presenteou-se com um belo missal. Tiramos algumas fotografias.

No mesmo dia da primeira missa, houve um lauto banquete aqui no Colégio, havendo discursos em honra dos novos sacerdotes. O Senhor Bispo, Mons. Palica, esteve presente, como também muitos outros professores da Universidade. À tarde, tive o meu quarto repleto de amigos, alunos do colégio e conhecidos de Roma. No meio, porém, de todas as expansões de alegria, eu sentia o vácuo de vossa ausência e dos meus. Em dado momento, pedi licença aos amigos e me retirei à capela, pois sentia necessidade de rezar por mim e por vós todos, aos pés de Jesus Sacramentado. E aquela tristeza que começava a sentir, ao pôr-do-sol, se transformou em alegria e consolação espiritual aos pés do Divino Amigo de nossas almas.

Ia-me esquecendo de dizer que, no dia da ordenação, tivemos uma audiência com o Padre Geral da Companhia de Jesus, que nos dirigiu palavras de encorajamento e fé. Nós o abençoamos e ele nos abençoou. Também o Cardeal Erhle, que reside aqui no colégio, nos deu uma audiência, falando-nos por mais de quinze minutos. Eram conselhos práticos para a vida unida ao Coração de Jesus e à Virgem Santíssima. Ele nos abençoou e depois, ajoelhando-se no chão, implorou a nossa bênção. E era de ver aquele quadro simbólico: um príncipe da Igreja, velhinho e trêmulo, com perto de noventa anos, ajoelhado diante de vinte e sete néo-sacerdotes, recebendo a bênção, de cabeça baixa e comovido. Recordou-nos a sua ordenação sacerdotal, há mais de cinqüenta anos, e nós vimos brilhar em seus olhos algumas lágrimas de saudades.

Celebrei a segunda missa na Igreja de Santo Inácio, no altar de São Roberto Belarmino, cujo corpo ali se encontra, pelos meus queridos papais. A terceira, na mesma igreja, por mim e meus irmãos.

No dia 29, tivemos audiência do Santo Padre, que nos falou carinhosa e paternalmente, como sempre. Ao dar-nos a bênção apostólica, disse-nos que abençoava também as nossas famílias, os nossos bispos, as nossas dioceses, as nossas pátrias e os nossos amigos distantes. Pediu que nos conservássemos sempre fervorosos e trabalhadores pelo reino de Jesus Cristo na sociedade e nos corações.

Ontem, os companheiros de divisão nos organizaram uma esplêndida festa lítero-musical, que excedeu a expectativa. Discursos, poesias, músicas, tudo agradou imensamente. Sua Eminência, o Cardeal Erhle, que esteve presente, tornou a falar-nos cheio de fé e comoção.

Em minhas missas, diariamente, rezo por vós, pelo papai e pelos irmãos. Hoje, dia de defuntos, rezei a terceira missa por alma de papai. Ainda devo celebrar por madrinha Enedina e pelos avós paternos. Também tenho que rezar em intenção do tio Joel e família, tio Quincas, Francisco Baptista, Dr. Severino e outras pessoas amigas. Quando mamãe quiserdes alguma missa por qualquer intenção particular, escrevei-me e eu a celebrarei.

A casula custou 750 liras. Tirei uma fotografia dela para enviar-vos. Está linda. A alva não me chegou, porém, me ordenei com uma do padre Monteiro, que foi meu padrinho de ordenação. Não penso que se tenha perdido, porque às vezes acontece que os embrulhos por correio tardam mais de três meses; tanto mais que seguramente vinha registrada.

Estive dois dias atrás com a Madre Tecla, do orfanatrófio de Natal, que seguirá no dia 12 do corrente para o Brasil. Ficou contentíssima em ver-me já sacerdote.

Com esta seguem apenas quatro fotografias e um santinho de ordenação porque não quero que a carta vá muito pesada. Depois vos enviarei mais.

Dai mil lembranças aos conhecidos todos. O meu abraço aos queridos irmãos, cunhados, tios e parentes, a quem abençôo de coração.

Abençoai vosso filho

Pe. Walfredo Dantas Gurgel

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