A FEIRA
ANTIGAMENTE, a
feira municipal de Nova-Cruz acontecia às segundas-feiras, na Rua Grande, principal rua da cidade. Era considerada uma das maiores feiras do agreste do Rio Grande do Norte, e atraía fregueses de toda a redondeza.
O armazém de secos e molhados do nosso pai, Francisco Bezerra, ficava localizado no melhor ponto dessa rua, e era um verdadeiro camarote, de onde toda a nossa família, mesmo atendendo no balcão, sem querer, podia assistir aos mais hilários espetáculos.
Havia camelôs fazendo propaganda e vendendo remédios pra lombriga, espinhela caída, reumatismo, “difrusso” (defluxo ou catarro), “estalicido” (coriza ou gripe), dor nas “oiça” (dor de ouvido), “morróida de botão” (hemorróidas), “comichão nas partes”, “queima na boca do estrombo” (azia), frieira, congestão (AVC) e outras mazelas.
“Feira Nordestina”, de Militão dos Santos
Havia na feira um “doutor”, “especialista” em tirar, com ácido, “sinais de carne”, que hoje seriam considerados “carcinomas”, mas naquela época não se falava nisso. Até pessoas mais esclarecidas se sujeitavam a tirar “sinais de carne”, principalmente no rosto. Por incrível que pareça, nunca se soube que um só procedimento desse não tivesse dado certo.
Havia um camelô que levava uma mala cheia de óculos de grau para vender na feira, e a mala voltava vazia. A maioria dos feirantes não tinha acesso a oculistas, salvo na capital do Estado, e por isso não hesitavam em comprar óculos sem recomendação médica. Provavam vários óculos, até que alguns dessem certo. O teste era feito com a leitura das letras miúdas de uma caixinha de fósforos.
No “pé da calçada” do armazém do nosso pai, havia algumas barracas que vendiam refeições. O cardápio era sempre o mesmo: picado (sarapatel), arroz mole e carne de bode guisada, tudo com muito colorau e gordura. O cheiro da comida invadia as nossas narinas, mas nunca provamos o gosto. Os feirantes almoçavam nessas barracas, e tomavam ponche de maracujá, com pedaços de gelo em barra, que vinha de fora, em caixotes, e cobertos com “pó de serra”, para não derreter. Nova-Cruz ainda não tinha energia elétrica nem água encanada. Nessas barracas também havia bolo branco (hoje o nome é bolo da moça), broa, soda, doce americano (geleia de coco) e cocorote.
Outro espetáculo hilário, que também havia na feira, precisamente na calçada do armazém do nosso pai, era o desafio estabelecido entre os cegos que ali pediam esmolas. Eles disputavam o ponto e se agrediam mutuamente, com insultos, às vezes engraçadíssimos. Sempre tentavam comover o povo, pedindo esmolas com suas cantigas monótonas, invocando nomes de santos e santas. Geralmente, os cegos pediam esmolas improvisando cantigas e se acompanhando com precários instrumentos musicais, feitos artesanalmente, como pandeiro, ganzá, triângulo e reco-reco.
As cantigas de cegos, antigamente, eram verdadeiras manifestações da cultura popular, sem influência de rádio e, muito menos, de televisão. Pediam esmolas e agradeciam sempre cantando, desejando felicidade às pessoas e falando sempre em Jesus, Nossa Senhora e Santa Luzia, a protetora dos olhos.
A inteligência, um dom nato, fazia com que eles procurassem emocionar os transeuntes, mostrando-se infelizes e desejando o bem àqueles que lhes davam esmolas.
Havia uma cega, Dona Zefa, que, há anos, pedia esmolas na feira, fazendo ponto na calçada do armazém do nosso pai. Uma vez por outra, ela entrava em choque com qualquer outro cego que quisesse ocupar o seu espaço.
Num certo dia, apareceu na calçada um cego desconhecido, de nome Nicanor, que quis ocupar o mesmo ponto. Dona Zefa, tentando expulsar o homem do local, iniciou imediatamente o seu trabalho de pedinte.
- Uma esmola pelo amor de Deus!!!
Recebeu a esmola e respondeu cantando, imitando cantoria de Igreja.:
Deus lhe pague a santa esmola
Quem me deu com alegria,
Quem protege vossos olhos
É sempre Santa Luzia!
Quem me deu com alegria,
Quem protege vossos olhos
É sempre Santa Luzia!
A cega que está aqui
Tinha olhos, via a luz
E agora, pede esmolas
Pelo sangue de Jesus.
Tinha olhos, via a luz
E agora, pede esmolas
Pelo sangue de Jesus.
Se eu pudesse trabalhar,
Trabalhava e não pedia;
Cidadão me dê uma esmola
Pelo amor da Virgem Maria.
Trabalhava e não pedia;
Cidadão me dê uma esmola
Pelo amor da Virgem Maria.
Quem nasceu cego da vista
E dela não se lucrou,
Não sente tanto ser cego
Como quem viu e cegou!
E dela não se lucrou,
Não sente tanto ser cego
Como quem viu e cegou!
Dona Zefa não era cega de nascença, mas, depois de adulta, fora acometida por esse infortúnio.
Nicanor, que já nascera cego, entrou na cantoria e respondeu:
Tenham pena deste cego,
Filhos da Virgem Maria;
Eu sou cego de nascença,
Nunca vi a luz do dia!
Filhos da Virgem Maria;
Eu sou cego de nascença,
Nunca vi a luz do dia!
Dona Zefa se irritou com o novo concorrente e partiu para a ignorância, cantando em tom de deboche, e se acompanhando com um triângulo:
Sete vezes fui casada,
Sete homens conheci
Juro por Nossa Senhora,
Sou virgem como eu nasci!!!
Sete homens conheci
Juro por Nossa Senhora,
Sou virgem como eu nasci!!!
O cego Nicanor, irreverente, respondeu ao deboche da cega, cantando e tocando o seu ganzá:
O seu triângulo é de chumbo fino
Mas o meu ganzá é de chumbo grosso
Dizer que é virgem é pura mentira
Respeite ao menos a boa fé do povo.
O que “vosmicê” tá dizendo agora,
É uma coisa que não se “expilica”
Ou “vosmicê” nasceu sem ter boceta.
Ou os maridos nasceram sem pica.
Mas o meu ganzá é de chumbo grosso
Dizer que é virgem é pura mentira
Respeite ao menos a boa fé do povo.
O que “vosmicê” tá dizendo agora,
É uma coisa que não se “expilica”
Ou “vosmicê” nasceu sem ter boceta.
Ou os maridos nasceram sem pica.
E a peleja dos cegos, na calçada do armazém, terminou aí…
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