segunda-feira, 31 de agosto de 2015

PARA A HISTÓRIA DO RN...POR DR.CYRO TAVARES

             Este texto é, sem a menor dúvida, o que de melhor se escreveu sobre meu pai. É o discurso do Dr. Onofre Lopes ao recepcioná-lo na Academia Norte Rio Grandense de \letras.


VELHO TAVARES

Onofre Lopes.


           Faz já algum tempo... as cenas me chegam à memória apenas em retalhos, resto de passado que faz história. Sei que, como adolescente ambicioso, fiquei cheio de inveja: Viram? Hoje houve um exame de francês que assombrou! É só no que se fala!... Foi um estudante, José Tavares, que fez exame todo tempo falando em francês! Cabra danado de inteligente!...Formidável, todo o exame em francês!
Não andava eu ainda fazendo preparatórios. Nunca havia entrado no Ateneu. Chegara recentemente do interior. Estava ainda bem brabo. Mas,gravei o interessante comentário e recolhi o nome de José Tavares, como se faz com as moedas de valor. Foi no tempo em que, menino empregado no comércio, primeiro na Casa de Ferragem de Francisco R. Viana, na Rua Dr. Barata, e, depois, no Armazém de Estivas de M. Rocha, na Rua Chile eu procurava caminho na nebulosa, e, nos tropeços, meio ambição, meio confiança, todo esperança, vagueava pelas salas de aula noturna do Dr. João Batista, do Mestre Ivo Filho, do Prof. João Tibúrcio depois, bem mais tarde, nas bancas de exame do Ateneu. Ouvia falar das vitórias dos que estudavam, dos anéis vistosos de quem se formava, da importância social, da elegância no vestir daqueles que vinham das Faculdades. Era, também, o tempo em que outros estímulos me excitavam: pessoas humildes, puras, boas, habituais das “vendas” dos meus irmãos João e Pedro Lopes, onde eu vivia e sonhava, contavam com exagero os milagres da inteligência de Rui Barbosa, recitavam Fagundes Varela, Olavo Bilac, Álvares de Azevedo, Castro Alves.
E, para maior motivação, via o jovem Bacharel kerginaldo Cavalcanti, inteligente, bem trajado, de passos largos e resolutos, espargindo vitórias, fazendo discursos floridos de estrelas...
Não ouvia mais falar em José Tavares. Estava longe, cursando a Faculdade de medicina do Rio de Janeiro. Reapareceu em meados de 1927, agora médico. Médico sem aquela velha austeridade. Era magro, de algum, bigode, calças largas, folgazão, comunicativo e humano. Chegou de bisturi na mão sabendo falar melhor o Francês e, já agora, também o Alemão e o Espanhol. Em Natal, não se fazia ainda cirurgia, como especialidade exclusiva. Somente o saudoso Januário Cicco, sempre capaz, hábil e culto, operava excepcionalmente os casos de urgência e os acessíveis à sua técnica.
José Tavares e Luís Antônio, formados juntos, amigos inseparáveis, o cirurgião moderno e o clínico geral seguro da medicina do tempo. Duas inteligências agudas na cidade provinciana e bucólica. Cidade de pouco ruído, de pouca gente, de ruas arenosas, de pregões de tabuleiro na cabeça.mas, nela também existiam as adormecidas canções e alma que Goethe via em todas as coisas. De pouca eletricidade, mas de céus iluminados e escampos, podia-se escutar o silêncio e ouvir estrelas, na rimas dos poetas e na plangência das doces serenatas. Tudo na cidade era pequeno, ou era pouco. De médicos, além de Januário Cicco e Varela Santiago, como figuras centrais, havia Otávio Varela, Ernesto Fonseca e, mais tarde, Aderbal de Figueiredo, todos do melhor conceito e respeitabilidade.
José Tavares e Luís Antônio chegaram plenos de novas energia. Fizeram uma revolução. Revolução na Medicina. Revolução no antigo hospital Juvino Barreto. Solteiros, fizeram também revolução no belo sexo. Alegres e traquinas eram os donos de tudo e de todas... Quem sabe se, por aí, ainda não há restos de ilusões que pedaços de alma recordam com ternura? Dois grandes profissionais vivendo a técnica e o progresso da Medicina contemporânea, sempre com grandeza d’alma, sempre sarcedotais. Em 1933, quando chegava do Rio de janeiro, também formado em Medicina, é que vim conhecer José Tavares, é que retomei a moeda guardada. Senti que devia tratá-lo de doutor. Era um grande nome e eu mais jovem. Mas, a sua simplicidade, a sua jovialidade e o coleguismo franco e largo eram tais que a intimidade veio depressa e espontânea. Passei a chamá-lo de Tavares. Hoje, chamo-o de velho Tavares, modo que uso para dizer querido e velho amigo. Amigo de todas as horas. Sempre solícito e leal desprendido e bom. Na minha condição de aprendiz de cirurgia, nunca me faltou a sua palavra de encorajamento, nunca me faltaram os seus ensinamentos, nunca me faltou sua orientação sensata e segura na conduta operatória. Eu dizia que ele era o meu Lejars, pelo estímulo que sabia dar, por sua presença constante e incansável em apoio das intranquilas sessões cirúrgicas, como fazia esse incomparável autor de A Cirurgia de Urgência.
As credencias da velha estima, a fraternal intimidade, o conhecimento do homem no seu valor humano e na sua intensidade de espírito são a chave que esta Academia depôs em minhas mãos para abrir as suas portas na saudação da imortalidade e que hoje se investe o cirurgião, o professor universitário José Tava\res da silva, o meu velho Tavares. Mas será que o José Tavares é um literato? Escreveu livros, fez crítica, ensaios e romances? Onde estão as suas obras? Respondemos: Sim! José Tavares é homem de letras! A sua obra está esculpida em 40 anos de arte. Está gravada nas salas de cirurgia, nas enfermarias, nos lares, no coração e na memória da cidade. Está na ajuda que deu aos colegas, está no ensino que ministrou aos seus alunos, está no exemplo de dignidade profissional, na austeridade e na beleza do gesto que faz da Medicina arte divina. Em tudo se vê uma poesia, um ritmo, uma eloquência. E a sua cultura humanística e a atualidade dos seus conhecimentos científicos? Não é ele um mestre da técnica cirúrgica, no manejo dos métodos terapêuticos e das sutilezas dos movimentos hidrossalinos? Não é ele o conhecedor dos grandes centros cirúrgicos da América e do Velho mundo? Não é ele um cultor da língua que define a nossa raça e fixa as nossas tradições? Não é ele que, sem preocupações literárias, sabe dar beleza e dignidade à linguagem, por seu estilo, fidelidade e clareza? Na época em que vivemos, no império dos números, da massa, da força, da máquina, quando as artes enlouqueceram e o Parnaso morreu, aquele que disciplina emoções e preserva firmeza espiritual é um esteta.nos seus escritos, nos seus discursos, não há parábolas nem alegorias; não há requintes nem retórica; não há vaidades nem esnobismos. Há o exato, o necessário para exprimir a verdade do seu pensamento. Na sintática ou na linguagem; n produção literária e nos voos da imaginação, talvez não seja um estilista; mas a conduta do pensamento, a singeleza da forma, o zelo gramatical levam o médico, o cirurgião, o professor catedrático, o homem de cultura às raias de outra missão: um servidor das letras. Os valores humanos se medem pela soma de todas as ações que imprimem no tempo o esforço criador da espécie. As letras são um instrumento a mais da ação do pensamento. Nem sempre a obra da arte da literatura é um livro. Revela-se, também, na coisa criada, pela sua profundidade e conteúdo. Imortalizamos o espírito criador. Fixemos na história a perfeição das coisas que inspiram a beleza da vida. Um bisturi tem também a sua linguagem nobre. Tem arte e ciência, tem sensibilidade e emoção. Faz as mais belas preces e suporta os maiores sacrifícios para acalmar os ventos das ruidosas tempestades da vida.
A Tavares nunca se lhe escasseou a emoção poética, a inspiração artística ou a eloquência para o bem. Não escreveu livros, mas espalhou cultura. As vitrines não ostentam volumes seus, mas uma cidade inteira aplaude sua figura humana frente ao templo da imortalidade. O marechal de Saxe e o Duque de Richelieu, os médicos Francisco de Castro e Miguel Couto, na Academia Francesa e na Academia Brasileia, não eram profissionais das letras, mas se imortalizaram na memória do tempo que Molière, Descartes Pascal, Diderot, Balzac não pertenceram às Academias. Nem se tem a esperança de ver repetida a fase áurea da geração de Olavo Bilac, Paula Nei, Arthur de Azevedo, Sílvio Romero, Machado de Assis, Coelho Neto, Joaquim Nabuco, José do Patrocínio. Muito menos a ressurreição da livraria Francisco Alves, da Garnier, da Lapa, da Rua do ouvidor, da Gazeta de Notícias, do jornal do Brasil, das polêmicas e das boêmias. Estamos em face de uma tumultuosa revolução da vida literária, de uma depressão o sentimento literário, como atividade exclusiva. Aqui e em toda parte. Vemos ruínas d velhos tesouros, e ao mesmo tempo experimentamos o sortilégio de um espírito novo, na vertigem dos espaços, desligados do passado e da história. A literatura e as artes, como ornamentos das ideias estão de nova roupagem. Mas, estilo, beleza, fidelidade definem o espírito, o caráter, a origem e o gênio da raça, na marcha do tempo. É preciso manter e avivar a chama do bom gosto, como instrumento de afirmação de um povo. O homem de letras é o guardião, aquele que esculpe e perpetua a vida na sua beleza, na sua eternidade.
Tavares, velho Tavares: A Academia o elegeu. Reconheceu que você fez obra imorredoura e realizou o ideal de cultura do seu tempo. Você fez outra obra literária. Esta é uma festa do espírito. É um reconhecimento. É uma justiça. É um aplauso. Estamos, por isso, de coração aberto, assim alegres e fraternos. Receba desta Casa, que bem soube alargar as portas para recebê-lo. Os que aqui chegam pelo que fizerem, poderão dizer, como Horácio, que não morrerão de todo. Venha, pois, para a imortalidade.

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