quarta-feira, 11 de junho de 2014

SOBRE SER VIRALATAS....


VIRA-LATA, MAS SEM COMPLEXO
Jason Tércio

Sou o mais livre dos animais 
urbanos. 
Tenho as ruas à minha disposição, 

durmo em qualquer canto, e, quando 
algum ser humano resolve me 
adotar, 
sou tratado sem frufru, como eu 
gosto. Mas sou também sensível e 

vulnerável. Por isso, exijo mais 
respeito e menos preconceito canino!


Me refiro a esse tal “complexo de 
vira-lata”. O Nelson Rodrigues 

bancou o Freud do Andaraí e 
inventou 
isso, tudo bem, foi engraçado, mas 

agora, por causa da Copa, a 
expressão foi apoderada por 

autoridades e aliados para se 
esquivarem de explicações sobre as 

falhas e malfeitorias do poder 
público.


Os governos torraram uma fortuna e 
as obras ainda estão incompletas e 

insatisfatórias? O Brasil já está entre 
os 15 países com maior número de 

homicídios no mundo? É potência 
econômica na América Latina, mas 

um dos 12 países mais desiguais do 
planeta e o segundo com mais 

analfabetismo na América do Sul, só 
inferior ao da Bolívia? Se você 

reclamar e citar nações em melhor 
situação, tem complexo de vira-lata.
Nelson Rodrigues

Aí está. Depois do 

bode expiatório, 
inventaram o cão 

expiatório. Mas até 
eu, com minha 

modesta inteligência canina, entendo 
que criticar fracassos, insuficiências 

e incompetências dos governos é 
prova de fé na melhoria de um país. 

Só protesta quem não perdeu a 
autoconfiança e a capacidade moral 

de reagir às injustiças. Quem cala, 
consente que o mundo degringole. 

Quem grita, acredita em avanços 
reais, não em discursos ou na boa 

vontade dos políticos.
E os senhores governantes parecem 

ignorar que complexo de vira-lata 
hoje em dia não passa de um mito, 

pertence ao museu da História, como 
rádio de pilha, bolero, chanchada, 

Grapette, Cadilac, nota de mil 
cruzeiros, gibi do Zorro, footing, 

“Repórter Esso”, vestido saco, Maria 
Fumaça, macaca de auditório, cuba-

libre. Era esse o Brasil de 1958, 
quando Nelson criou a expressão.


Naquele tempo os vira-latas 
realmente viviam na pior, mordendo 

sarna e pulga o dia inteiro, favelados 
andavam descalços e cheios de 

pereba, moravam em barracos de 
zinco e tábua, crianças morriam de 

fome.
De lá pra cá tudo mudou. Eu, por 

exemplo. Vira-lata sim, mas não 
complexado. Ninguém me olha com 

pena. Sou bem comportado, não 
passo fome, não faço caca nas 

calçadas. Tenho orgulho de minha 
sub-raça, podem ter certeza. É 

melhor ser um vira-lata sem o rabo 
preso, do que ter pedigree e viver 

com o rabo entre as pernas.
Por isso, senhores do poder e das 

redes sociais, faço um apelo: deixem 
os vira-latas em paz. Não temos 
nada 

a ver com suas complicações 
humanas e desumanas. Na minha 

turma, quando surge uma briga, nós 
dizemos: isso é complexo de gente, 

que ama e odeia ao mesmo tempo.
Imagino o que acontecerá se o Brasil 

perder a Copa. Será que o povo vai 
ficar ganindo e chorando, como os 

vira-latas de 1950? E se ganhar, as 
ruas vão ficar lotadas de patrioteiros 

pitbulls latindo de euforia, como em 
1958, 1962, 1970?


Ouso prever que não vai acontecer 
nem uma coisa nem outra. Desconfio 

que o Brasil já não depende de 
futebol para ser feliz ou infeliz de 

quatro em quatro anos. Ainda bem. O 
complexo de vira-lata acabou faz 

tempo e está mais do que na hora de 
acabar também o complexo de 

“melhor do mundo”. Bola pra frente.
E, antes que eu me esqueça, a 
melhor 

frase do Nelson Rodrigues é “toda 
unanimidade é burra”.


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