sexta-feira, 20 de junho de 2014

A POESIA RUSSA...



Aleksandr Blok: Os Doze




1
Noite negra.Branca neve.
Vento, vento!
Nem um só homem se aguenta de pé.

Vento, vento

por este mundo de Deus!

O vento faz girar

a branca neve.

Há gelo debaixo da neve leve.

Resvaladios, pesados,

deslizam os passos

na rua.... Ah, coitado!



Entre duas casas

estenderam uma corda.

E na corda um cartaz:



Uma anciã chora,

não percebe o que quer dizer

aquele cartaz.

E porquê um cartaz tão grande?

Quantas peúgas se podiam fazer para a 


garotada

que tem os pés gelados...

A velha, como uma galinha

espantada, atravessa um monte de neve.

<estes bolchevistas atiram-nos à 




cova!

Vento que corta!

Não aguentas o frio!

E um burguês numa esquina

esconde bem o nariz.

Mas quem é este? De cabelo comprido

e diz em voz baixa:

É o fim da Rússia!

É talvez um escritor

ou um orador...


E aí vai um homem de saias,

esconde-se atrás do monte de neve...

Por que estás hoje triste,

camarada pope?

Recordas como antes

andavas de peito saído

e a cruz te fazia brilhar

a barriga aos olhos do povo?


Uma dama vestida de astracã

vira-se para outra:



Nisto escorrega

e – pumba! – cai estatelada!

Ai, ai!

Vamos ajudá-la!


O vento é alegre,

alegre e cruel.

Agita as roupas

dos caminhantes,

rasga, aperta e agita

o grande cartaz:


E traz-nos estas palavras:


 ... Fizemos uma reunião...
... 
naquele edifício...

... discutimos...

e decidimos:

Ir prò quarto dez rublos,

dormida vinte e cinco...

... não pode ser por menos...


Vem daí...

Anoitece.

Esvazia-se a rua.

Só ficou um mendigo

curvado

e o vento assobia...


Eh, pobre homem!

Anda,

abraça-me...

Quero pão!

E depois quê?

Fora!

O céu está escuro.

Raiva, uma triste raiva

ferve nos peitos...

Raiva negra, raiva santa...

Camarada! Fica

de olhos bem abertos!
2
Voa  a neve e passeia o vento.

E os doze homens avançam.

Correias negras nos fuzis,

e à volta muitas luzes...

Entre os lábios um cigarro,

o chapéu enfiado

e nas costas um ás de ouros1!

Liberdade, liberdade!
Ah, ah, vão sem a cruz!
Tra-ta-ta!
Faz frio, camarada, faz frio!

dá um chocho à minha miúda!

 Liberdade, liberdade,

ah, ah, vão sem a cruz!

Kátia está ocupada com Vanka,

e está ocupada com quê?...

Tra-ta-ta!

Há mil luzes à volta...

Nas costas a correia do fuzil...

Firme o passo revolucionário!

O inimigo nunca dorme!

Pega sem medo no fuzil, camarada!

Dispararemos uma bala à Santa Rússia!


A reaccionária,

a das isbás,

a do cu grande!

Ah, ah, vão sem a cruz!
3
Assim é a nossa juventude:

servir na guarda vermelha,

servir na guarda vermelha,

e perder as suas cabeças loucas!

Ah, tu, pobre,

doce vida!

Dólman rasgado

e fuzil austríaco!

Para que todos os burgueses sofram,

lançaremos fogo ao mundo,

fogo ao mundo que nasceu com sangue.

Senhor, a tua bênção!

4
A neve gira, o cocheiro grita

com Vanka e Kátia no trenó!

E na berlinda levam

lanternas eléctricas...

Ah, ah, arre!...

Com o capote de soldado rasgado

tem cara de parvo.

Enrola o bigode preto,

torce-o

e diverte-se...

Aqui está Vanka, de costas largas!

Aqui está Vanka, o linguareiro.

Abraça a tua Kátia, convence-a...

Ela inclina a cabeça para trás,

os seus dentes pequenos brilham como 

pérolas...

Ah, tu, Kátia, Kátia minha,

bochechuda!
5
Tens uma cicatriz no pescoço,

Kátia, a cicatriz de uma facada.

No peito, Kátia,

tens uma unhada fresca!

Eh, eh, dança!

Que pernas tão bonitas!

Levavas roupa de rendas;

por que não agora?

Fodias com oficiais,

por que não agora?

Fode, fode!

O coração salta-me no peito!

Recordas, Kátia, aquele oficial,

que não se salvou da navalha...

Não te lembras dele?

Ou não tens a memória fresca?

Eh, eh, refresca-a,

mete-me na cama contigo!

Polainas cinzentas levavas,

e tomavas chocolate,

ias prà cama com cadetes...

Agora vais com soldados?




Eh, eh, peca, peca!

Vais sentir a alma mais leve!

6
Outra vez se achega o cocheiro,

voa, grita, vocifera...

Alto, alto! Andriukha, socorro!

Petrukha, corre atrás dele!

Ta-tarara! ta-ta-ta-ta!

O pó de neve voa para o céu!...

O cocheiro foge com Vanka...

Uma vez mais carrega o gatilho...

Tra-tarara! Vamos dar-te uma lição,
............................................................

o que é andar com a miúda de outro!

O canalha escapou-se! Verás

Como amanhã acabo contigo!


E Kátia, onde está? Morta a deixei,

com uma bala na cabeça!

Estás contente, Kátia! Não se mexe...

Jaz morta sobre a neve!...

Firme o passo revolucionário!

Não descansa o inimigo!
7
E de novo avançam os doze,

às costas levam fuzis.

E só ao pobre assassino

Não se lhe vê a cara...


Cada vez mais depressa,

os passos vão-se avivando.


Leva um lenço ao pescoço

e não se pode aguentar...



Ou choras a pobre Kátia?

eu gramava essa miúda...

Muitas noites embriagadas

passei nos seus braços...

<dos seus olhos de fogo,

por aquele sinal vermelho

na sua coxa direita,

matei, homem fraco,

e matei-a por ciúme... ai!

Tu, Petka, és uma mulher?

Queres arrancar a alma

e mostrá-la a todos? Fá-lo!
É preciso que te domines!
de mimar a miudagem.

É o momento de uma carga

mais forte, querido camarada!

E Petrukha demora

a pressa dos seus passos...

A cabeça levanta

e de novo se alegra...

Eh, eh!

Divertir-se não é pecado!



Fechem as casas,

porque hoje haverá saque!

Abram as adegas,

hoje divertem-se os pobres!

8

Ai, tu, que amargura!

Que morte

tenebrosa!

Rico tempo

vou passar, vou passar...

A cabeça

vou coçar, vou coçar...




E pevides de girassol

vou comer, vou comer...
E a navalha

farei servir, farei servir...

Tu, burguês, foge como um pardal!

Beberei o teu sangue,

por causa desta rapariguinha

de sobrancelhas negras...




Que descanse em paz, Senhor,

a alma da sua serva...

Que aborrecimento!

9

Não se ouve o ruído da cidade.

Sobre o Nevá o silêncio é pesado.

Já se foi o guarda nocturno:

ao gozo, malta, sem vinho!

Numa esquina está um burguês

com o nariz tapado.

E um cão mete-se-lhe entre os pés,

sarnoso, indeciso, com o rabo entre as pernas.

O burguês, como o cão esfomeado,

está indeciso e calado.

E o velho mundo, como um cão sarnoso,

está atrás dele com o rabo entre as pernas.

10

A tempestade põe-se furiosa,

ah, que tempestade de neve!

A dois passos não se vê nada,

com esta tempestade!




A neve gira como num funil,

a neve levanta-se como uma coluna...




De que te salvou

o ícone dourado?

Que falta de sentido, também,

pensa bem,

ou não tens sangue nas mãos

por amor da tua Katka?

O inimigo está cada vez mais perto!

Avante, avante, avante,

povo trabalhador!

11

... E sem nenhum nome sagrado,

os doze seguem avante.

Estão dispostos a tudo,

 sem nada lamentar...

Os seus fuzis de aço apontam

contra o inimigo que não se vê...

por ruelas escuras,

onde a neve cai feroz...

E da neve mole

não podem sair as botas...




A bandeira vermelha

os olhos lhes fustiga.




Ouvem-se

os seus passos ritmados.
A qualquer momento pode despertar
o inimigo cruel.
E a neve caía nos olhos

dias e noites

sem parar...

Avante, avante,

povo trabalhador!

12

... E avançam com passo seguro...

É apenas o vento na bandeira vermelha

que ondeia à frente...

À frente há um monte de neve gelada


Só um cão vadio esfomeado

aparece a coxear...

ou far-te-ei cócegas com a baioneta!



E tu, velho mundo, como um cão sarnoso,

desaparece ou desfazer-te-ei!



... Mostra os dentes como um lobo faminto,

não fiques de rabo entre as pernas,

cão sarnoso, cão vadio...

escondendo-se atrás das casas?
Vale mais que te entregues vivo!

sai ou começamos a disparar!

Tra-ta-ta! E só o eco

ecoa das casas

Só a tempestade com uma risada ampla

estala na neve

Tra-ta-ta!

Tra-ta-ta!

E assim vão com passo guerreiro,

atrás do cão esfomeado,

e à frente a bandeira sangrante,

 e invisível na neve

 e imune às balas,

através da tempestade que aparece, terna,




espalhando um tesouro de pérolas de neve,

 com uma coroa de rosas brancas

- à frente vai Jesus Cristo.


Janeiro de 1918
Poetas Russos
Tradução, prólogo e notas de Manuel de Seabra
Editora: Relógio D' Água Editores - edição 1995

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