quarta-feira, 24 de setembro de 2014
Fernando Pessoa fala sobre DEMOCRACIA...
A DEMOCRACIA
Contra a democracia invoca-se, em primeiro lugar, o argumento da ignorância das classes cujo voto predomina, porque seja maior o seu número. Mas como os sábios divergem tanto como essas classes, não parece haver vantagens na ciência para elucidação dos problemas. Onde há, sem dúvida, vantagens para a ciência é na escolha dos homens que devem governar; ora é precisamente isso que o voto escolhe. O povo não é apto a saber qual a direcção que a política pátria deve tomar em tal período; mas os homens cultos também não o sabem, pois que divergem em tal ponto. Mas o que os homens cultos sabem, e o povo não sabe, é avaliar de competências para certos cargos. Propriamente, só financeiros é que sabem avaliar qual o indivíduo que melhor geriria as finanças de um povo; só militares, qual o melhor indivíduo para ministro da Guerra.
Cumpre distinguir entre a vontade da maioria e a vontade nacional. A vontade da maioria é consciente; a vontade nacional é inconsciente. Em determinada altura, determinada nação segue certo rumo; não o sabem os políticos, em geral, nem o sabe o povo. Ora o único sentido de "vontade nacional" será o sentido desse rumo. Quem é que o sente? Como esse rumo é inconsciente, fruto de não sabemos que leis sociais, só pode existir, ou nas camadas inconscientes do país, ou nas camadas conscientes que sejam representativas intelectualmente dessa inconsciência.
(Vence sempre aquele partido que representa a força em dado momento; e se esse partido, e não outro, representa a força, é porque as camadas inconscientes da nação delegaram nele misteriosamente executar a sua inconsciente vontade.) (ex.) [...]
Uma nação, em qualquer período, é três coisas: (1) uma relação com o passado; (2) uma relação com o presente, nacional e estrangeiro; (3) uma direcção para o futuro. Assim, em todos os períodos, há forças que tendem a manter o que está, forças que tendem a adaptar o que existe às condições presentes, e forças que tendem a dirigir o presente para um norte previsto, visionado no futuro. Não se trata aqui de partidos políticos, mas de íntimas forças nacionais. Assim, hoje, em Portugal, o partido democrático é o que tende a manter a sociedade portuguesa no seu estilo passado; é o partido conservador, visto que resume os vícios e as atitudes dos partidos monárquicos. Depois, há a corrente representada pela extinta ditadura Pimenta de Castro, que pretende adaptar o país às circunstâncias presentes, equilibrá-lo, chamá-lo à realidade das necessidades quotidianas da vida moderna. Acima destes dois partidos paira, um pouco desorganizadamente, aquela corrente que pretende dirigir a sociedade portuguesa para um fim, para uma nova concepção de si própria.
Surgiu lentamente, através da Escola de Coimbra, com Antero de Quental, sobretudo; atravessou a "Renascença Portuguesa", do Porto; paira hoje, um tanto no ar, buscando apoio e orientação nítida. É isto que lhe pretendemos dar, dispondo-nos a construir uma orientação portuguesa.
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