sábado, 19 de agosto de 2017

A CANÇAÕ EDIPIANA...UMA ANÁLISE...

A pedra e a perda – feminino e temporalidade
notas a partir da escuta de Você, você - Uma canção edipiana David Calderoni





Abertura: Em que tempo pode a mãe advir como mulher para a criança? Questão do drama edípico, que a trama poética de Chico – nesta cação escrita em parceria com Guinga – retoma a partir dos olhos do pequeno Francisco.
 
 
 
Qualificação: David Calderoni é psicanalista e compositor, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pesquisador do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC/SP, mestre e doutorando pelo Instituto de Psicologia da USP, tendo lançado em 98 o CD Viação. O autor agradece a André Singer, José Luiz Maia, Maria Lúcia Calderoni, Renato Mezan e Swami Jr. o debate e as sugestões.
 
 
I. Apresentando a letra 
Vocêvocê - Uma canção edipiana (Guinga / Chico Buarque) 
Que roupa você veste, que anéis?Por quem você se troca?Que bicho feroz são seus cabelosQue à noite você solta?De que é que você brinca?Que horas você volta?Seu beijo nos meus olhos, seus pésQue o chão sequer não tocamA seda a roçar no quarto escuro
E a réstia sob a porta
Onde é que você some?
Que horas você volta?
Quem é essa voz?
Que assombração
Seu corpo carrega?
Terá um capuz?
Será o ladrão?
Que horas você chega?
Me sopre novamente as canções
Com que você me engana
Que blusa você, com o seu cheiro
Deixou na minha cama?
Você quando não dorme
Quem é que você chama?
Pra quem você tem olhos azuis
E com as manhãs remoça?
E à noite pra quem
Você é uma luz
Debaixo da porta?
No sonho de quem
Você vai e vem
Com os cabelos
Que você solta?
Que horas, me diga, que horas, me diga
Que horas você volta?

II. Contexto, motivação e limites destas notas
Ao conferir à canção Você, você o subtítulo uma canção edipiana, Chico Buarque fornece uma informação que decerto considera importante para a apreciação da letra de sua autoria, contribuindo para que, em minha condição de psicanalista, compositor e aficcionado por sua obra, ela se constitua como um instigante desafio interpretativo.
Na época em que a canção foi composta, Chico possivelmente já aguardava o nascimento de seu segundo neto que, a exemplo do primeiro, lhe seria dado por sua filha Helena. Como informou na ISTOÉ o jornalista Sidney Garambone, o sentido da letra relaciona-se a essa situação existencial do pai e do avô amoroso: "A belíssima canção Você, você, do novo CD, feita em parceria com Guinga, nasceu da visão do netinho no berço enquanto a mãe Lelê se aprontava para sair e deixar o pequenino aos cuidados do vovô." 
Esse entrelaçamento de circunstânciais autorais e biográficas contextualiza a base de minha hipótese interpretativa, a saber: começando por adotar o ponto de vista de seu Francisco neto para falar da relação deste com Helena, Chico entretece uma engenhosa indução poética através de uma imbricação de perspectivas, pela qual vai cifrando e cruzando na trama edípica o avô, o pai, a mãe, o filho, a família humana e sua relação com o Feminino e a Temporalidade. Nos comentários da letra, trecho a trecho, que farei a seguir, convido o leitor a acompanhar o desdobramento desta hipótese e julgar sua pertinência.
Antes porém, cumpre declarar uma intenção de debate crítico com João Gabriel de Lima, jornalista da revista Veja, a quem o mencionado subtítulo pareceu de uma ruinosa e equivocada vacuidade ostentatória: "Você, você quase é estragada pelo pomposo subtítulo de canção edipiana’. Pode ser entendida - e essa é sua verdadeira vocação - como uma bela dor-de-cotovelo, ao estilo de Lupicínio Rodrigues." Discordo desta pretensão de asseverar categoricamente o que pode e o que não pode ser o entendimento verdadeiro da canção. Acredito que a consideração do subtítulo e dos já mencionados episódios motivadores da vida pessoal do compositor ajude a captar um dos possíveis campos de sentido da letra, justamente aquele indicado pelo letrista no subtítulo e rechaçado pelo jornalista. Contrapondo-me à opinião deste último, espero indicar o quanto o denso conteúdo de referências e relações da letra em exame permite iluminar de modo inovador facetas essenciais do complexo de Édipo (que incluem a problemática da dor-de-cotovelo), e o quanto Chico revela de singular profundidade e fineza criativa na abordagem estética desse alicerce da antropologia psicanalítica.
Cabe ainda salientar um limite do meu recorte analítico, uma vez que passarei ao largo de inúmeros elementos musicais (melódicos, harmônicos, rítmicos e instrumentais) que polifonizam e colorem os afetos, imagens, motivos e idéias em cujo tecido a letra confecciona e potencializa sua expressividade. A curva das frases melódicas que se finalizam reticencialmente, o seu pulso hesitante, o clima harmônico misterioso, os violões que harpejam agudos feito caixinha de música em noite de assombração, tudo isso ambienta de infância e embala o ansioso carrossel de perguntas veiculadas pela delicada interpretação vocal de Chico. Salta aos olhos e ouvidos a felicidade da parceria entre a linda música de Guinga, a letra arrebatadora de Chico e o sensível arranjo de Luiz Cláudio Ramos. A compatibilidade de gênios que preside esse raro casamento de música e letra mereceria um estudo à parte.
É nesse sentido, enfim, que estas notas querem abrir perspectivas e motivar a produção de interpretações outras.
 
III. Comentários, associações e reperguntas Que roupa você veste, que anéis?
Por quem você se troca?
A peculiar regência verbal - trocar-se por alguém - aponta ao universo infantil, onde as relações humanas se pautam por uma lógica do dom, isto é, pelo comércio da dádiva e do dote - como quando se diz que a criança come pelo amor da mamãe. A isso se conjuga outra conotação do trocar-se por alguém: mudar de papel social e de papel sexual. Donde os dois vocêsdo título: você (mãe), você (não-mãe ou mulher). 
Se é certo que você seja a mãe do eu que pergunta, o eu pergunta: de quem é você quando é não-mãe ou mulher? No sonho de quem / Você vai e vem / Com os cabelos / Que você solta? Que leis de propriedade regeriam a troca de dons de amor? Seria o amor relação de posse sem propriedade exclusiva? Ou a cada relação haveria uma exclusão? Cada tipo de relação amorosa definiria o que lhe é próprio? Quem definiria os tipos de regime de propriedade de uma pessoa com relação a outra?
Claude Le Guen introduziu em sua Teoria do Édipo Originário a idéia de que o não-mãe seria o precursor do pai. Na letra de Chico, o não-mãe aparece como coextensivo à mulher. Seriam perspectivas incompatíveis?
A cada vez, você é a mesma? você é outra? Permanecendo sempre a mesma, haveria tempo?
Vestir anéis - que alianças isso envolve? Alianças com quem? Com aquele por quem você se troca? Por quem você veste tal roupa? Para quem, para quê? Qual o sentido dessa roupa? É adereço de quais ritos? A que atos encaminha? O que se dá? O que se recebe em troca?
Que bicho feroz são seus cabelos
Que à noite você solta?
A noite marca o tempo da transformação; soltar os cabelos assinala a passagem à condição de bicho feroz.
Retomando Freud, poderíamos perguntar: que ameaça figura o mito de Medusa, monstro feminino que traz serpentes por cabelos e cuja visão direta petrifica? Por que Medusa é gorgós(impetuosa, terrível, apavorante)?
Junito Brandão relata que "Perseu, sem poder olhar diretamente para Medusa, refletiu-lhe a cabeça no escudo e, com a espada que lhe dera Hermes, decapitou-ª" Haveria na estratégia da letra recurso correspondente ao escudo?
Qual a relação entre sexualidade, agressividade e terror? Com Ferenczi, poderíamos perguntar: aos olhos da ternura infantil, o engajamento sexual é violência? Com Monique Schneider, poderíamos lembrar as transformações históricas da lenda de Édipo, ao longo das quais a Esfinge monstruosa perguntadora toma o lugar da Esfinge fêmea ávida de amor. O dilema entre o desejo causado pela mulher que gera vidas e o desejo de retorno ao ventre da mãe - não estaria aí uma das vertentes da questão do Feminino? Qual visão da sexualidade feminina arrisca o homem? Pelo que e a que se arrisca?
De que é que você brinca?
Que horas você volta?
Associação: na rede, o casal de índios brinca... De que brinca Macunaíma? 
De que brincam João e Maria? Que brincadeira é essa do menino João?: agora eu era herói, rei, bedel, juiz, louco... 
João brinca de agora eu erafinja que agora eu era o seu brinquedo / eu era o seu pião / o seu bicho preferido... Agora eu era: a ficção como reinvenção de tempos e de papéis.
Você não pode representar todos os papéis ao mesmo tempo: há o tempo em que você solta os cabelos, há o tempo em que você volta. Entre estes, há o tempo enigmático em que vocêbrinca - de quê?
Seu beijo nos meus olhos, seus pés
Que o chão sequer não tocam
A seda a roçar no quarto escuro
E a réstia sob a porta
Onde é que você some?
Que horas você volta?
O beijo nos olhos assegura-os na jornada quase proibida: decerto é de quem beijou que provém o salvo-conduto. Aos olhos beijados seria então permitido avançar até o limite da porta ou das pálpebras seladas pelo beijo. Seriam bons os devaneios e sonhos a que convida esse gesto maternal de boa-noite?
É a quem beijou que o olhar segue, num cenário de fantasia onde os pés não tocam o chão. Fantasia cujo solo real não é difícil imaginar: de tão suaves e silenciosos, os passos da mãe que se afasta parecem levitar, deixando o eu na companhia de tênues sensações - o som da seda que roça, a réstia que é a luz sob a porta.
Crianças bem pequenas tomariam a saída do campo visual como saída da existência. Mas a luz vazada é o presságio de que você some para o eu onde você aparece para outrem. Assim, o fio de luz conduz o olhar à imaginação do que, numa dimensão de contrastante violência, aconteceria Atrás da Porta
Quando olhaste bem nos olhos meus / E o teu olhar era de adeus / Eu te estranhei / (...) / E me arrastei e te arranhei / E me agarrei nos teus cabelos / Nos teus pêlos / (...) / Te adorando pelo avesso / Pra mostrar que inda sou tua / Só pra provar que inda sou tua... O espaço no qual você some é reversível no tempo, a porta há de abrir para o regresso: o tempo da espera prepara o tempo da esperança realizada - mas é incerta a duração da espera, assim como o advento do retorno - que horas você volta?
 
 

Quem é essa voz?
Que assombração
Seu corpo carrega?
Terá um capuz?
Será o ladrão?
Que horas você chega?

Assombração é sujeito ou objeto?
Desta feita, os sons comparecem não no farfalhar da seda, mas numa voz cujo emissor é invisível. E é sobre o incógnito dono dessa voz que recaem as perguntas sugestivas sobre aquilo que, tampando a cara, desvendaria o ofício: invadir, assaltar, roubar, mantendo a face oculta. 
À primeira vista, a voz que carrega o corpo vem de fora. Mas como pode uma voz fazê-lo, senão por invocar desde dentro o corpo que carrega? Nesse caso, como se teria introduzido a paixão que a voz aciona?
Teria sido como o terceiro que, segundo conta Teresinha, Foi chegando sorrateiro / E antes que eu dissesse não / Se instalou feito um posseiro / Dentro do meu coração ? Estaria encoberto pelo ventre seminal em crescimento? Quando se revelariam os sujeitos ocultos que participam do transporte de você? - contidos por você, até que chegue o tempo da chegada...
Me sopre novamente as canções
Com que você me engana
Que blusa você, com o seu cheiro
Deixou na minha cama?
Você quando não dorme
Quem é que você chama?

Tendo, de início, um murmúrio feminino, feito cantiga de ninar, introduzido sem palavras a canção, a evocação do acalanto revela-se aqui em plena ressonância. Proviria então da mãe a voz que com papões e cucas entoa palavras de assombração? Você, você seria daí um acalanto-resposta que devolve em forma de perguntas os enigmas infundidos pelas cantigas maternas?
Enigma: mistério... ou ilusão? Como se a formação de uma queixa atravessasse o luto da inocência: você me engana. A memória desse desengano deixa um rastro olfativo ambíguo. A blusa tem o cheiro da mãe ou da mulher? Ao infante é legado o trabalho de fazer com que essa blusa não se petrifique como a mortalha do amor, aprisionante e insolúvel materialização do ressentimento e da saudade.
Me sopre novamente as canções / Com que você me engana... - em que condições o desejo de ser enganado é sustentado pelo desejo de ser? Talvez quando seja o único modo de existir, posto que a verdade esteja interditada. Nessas condições, o mais profundamente reprimido é o desejo de verdade.
Porém, não seria o engano o que primeiramente se deseja, mas sim o amor do qual o deixar-se enganar é o tributo. Daí, o eu se cinde: uma parte se gratifica com o amor, uma parte se ressente do preço cobrado, uma parte se insurge, uma parte se culpabiliza. Nessa dinâmica da sedução, onde a máscara? onde a verdade? onde a fantasia? onde a realidade? 
Um dos freqüentes destinos dessa sedução originária consistiria na servidão voluntária que se efetua nas relações sociais como inescapável hipocrisia. Quando se acredita que não mais subsista rosto atrás da máscara, a reflexão afetiva esbarra na desnorteante superficialidade do jogo de espelhos, em que multiplicadas se entremiram mímicas postiças.
Pode ocorrer também que, por mais francamente advertido que seja da condição transitória da presença materna, o eu se aferre à inalcançável exigência de exclusividade. Considerando que o império do desejo é congênito ao eu, tal possibilidade sempre se efetiva em alguma medida. Assim sendo, a abertura do eu à verdade condiciona-se pelos caminhos através dos quais vem a admitir a perda, a frustração, a falta. 
Se o Feminino efetua-se como potência de fusão e como potência de geração, e se o Tempo é trânsito entre identidade e diferença, que fator promove uma ou outra destas funções?
Pra quem você tem olhos azuis
E com as manhãs remoça?

Ora, só remoça quem tenha envelhecido. De que mãe então fala agora o compositor? Da jovem mãe de seu neto? Da sua própria mãe? Ou, para além das circunstâncias biográficas (conquanto motivado por elas), Chico presentifica com seu canto um modo de encontro com o objeto perdido? Que prodígio encantatório do tempo sua astúcia poética promove e ensina? 
Eu diria que sua poesia é também uma arte do amor, e que o seu amor é dom de reflexão afetiva: Vejo meu bem com seus olhos / E é com meus olhos que o meu bem me vê.
Este trânsito perceptual profundo permitiria substituir a irrealizável esperança de encontrar o objeto perdido pela esperança de encontrar os sujeitos solidarizados pelo que perderam.
E à noite pra quem
Você é uma luz
Debaixo da porta?

Onde se localiza aquele para quem você é uma luz? no berço aquém da porta? ou na cama além da porta? 
O eu que via o feixe de luz sob a porta não haveria de inquirir sobre a própria identidade, a menos que houvesse mudado de condição e ampliado a perspectiva.
Ao permitir incluir na pergunta sobre a identidade dos personagens tanto o eu que cobiçava a exclusividade da mãe, como o rival que a possuiria enquanto mulher, embaralham-se e indeterminam-se tanto a oposição entre o eu e seu rival, como a oposição entre a mãe e a mulher.
No sonho de quem
Você vai e vem 
Com os cabelos
Que você solta?

Observando que o sonho aparece no interior de uma pergunta, pergunto: a começar de As Cidades, como opera o motivo do sonho no corpus buarquiano?
"As cidades do disco são sonhadas, irreais", declarou Chico.
Adentrando o motivo do sonho em ato, vejamos como opera o sonho na canção Sonhos sonhos são:
(...) Em Macau, Maputo, Meca, Bogotá / Que sonho é esse de que não se sai / (...) / Sei que é sonho / Não porque da varanda atiro pérolas / (...) / Mas porque na verdade não me queres mais / Aliás, nunca na vida foste minha No interior do sonho, pois que dele não se sai, o compositor encontra na ausência de desengano amoroso o sinal da diferença entre sonho e realidade.
Nos bastidores do irrealismo crítico de Chico, a cidade ruge e o tempo urge: "Não penso em parar agora, mas estou me preparando para ser um dia abandonado pela música. (...) O tempo está ficando curto."
Segundo analisa Sidney Garambone, "a angústia do amadurecimento se fez presente em Xote de Navegação": 
Eu vejo aquele rio a deslizar / O tempo a atravessar meu vilarejo / E às vezes largo / O afazer / Me pego em sonho / A navegar / (...) / Pela água do rio / Que é sem fim / E é nunca mais / (...) / Num mesmo instante eu vejo a flor / Que desabrocha e se desfaz / (...) / Pra quem anda na barcaça / Tudo, tudo passa / Só o tempo nãoNão como lugar de ilusão compensatória das angústias em face do tempo e das decepções afetivas, mas sim como ocasião de reabitá-las num modo fantasístico de questionamento auto-reflexivo, o sonho em Chico evolui para constituir-se propriamente como um motivo operante: mais que tema, vem a ser instrumento e exercício de uma sensibilidade pensante. 
"É curioso como a publicação de meus livros Estorvo e Benjamim aumentou meu rigor nas letras (...)." Estas palavras de Chico, sugerindo um paralelo entre a visada atual das letras e a das narrativas onírico-críticas desenvolvidas nesses livros, nos quais a alucinação torna-se perspectiva de estilo, estimulam a hipótese de que, à medida que a pólis real vai virando fantasmagoria caótica, o sonho em Chico vai-se politizando. 
O alvo sendo o sentido do sonho em Você, você, esse percurso por canções e obras outras encontra sua escala final de reengate n’Aquela Mulher:
(...) Que noites de alucinação / Passo dentro daquela mulher / Com outros homens, ela só me diz / Que sempre se exibiu / E até fingiu sentir prazer / Mas nunca soube, antes de mim / Que o amor vai longe assim (...) Aqui, o amor vai longe dentro: as noites de alucinação se passam no interior d’Aquela Mulher.
Já em Você, você (No sonho de quem / Você vai e vem / Com os cabelos / Que você solta?), sendo a mulher mãe/filha interditada, ainda assim o amor é dirigido à comparticipação da intimidade psíquica, mas de um terceiro, cuja identidade é suspensa numa interrogação, através de cujo sonho se tem acesso à imagem sensualmente sugestiva dos cabelos de você, balançando soltos num movimento de ir e vir.
É no espaço de um sonho auto-interrogante, pelas suas virtudes de alucinação meditativa, que se ambienta o indireto e reflexivo regresso ao objeto perdido. Tanto quem regressa, como aquela a quem se regressa estão agora prenhes de múltiplas perspectivas: assim como Perseu somente acede em segurança à imagem de Medusa mediante o seu reflexo, o compositor procede à visão indireta da mãe através dos olhos do neto.
Tendo tal perspectiva identificatória se apoiado de início na referência ao objeto comum interditado ao avô e ao neto (a filha/mãe), foi-se encaminhando à encenação do desejo interditado a todos os seres humanos: o desejo de deter o curso do tempo, de modo a eternizar a presença do objeto-fonte de amor.
Destarte, ao longo da canção, os versos de Chico arquitetam uma geometria do devir, onde o ciclo das horas vai progressivamente ganhando relevo e, deslocando a cada volta os seus anéis, passa do círculo repetitivo à erradia espiral.
Por fim, o filho que repassa a descoberta da mulher na mãe comunga com a humanidade a experiência da passagem do tempo: perda e espera, esperança e encontro... de quem se irmane na escuta do apelo:
 

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